São Paulo, sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

XICO SÁ

Transtorno obsessivo corintiano

Não se fala em outra coisa, por todos os lados da cidade, o que transformou o TOC em compulsão: cai ou não cai?

AMIGO TORCEDOR, amigo secador, não se fala em outra coisa neste pueblo de São Paulo de Piratininga, velho oeste ludopédico da hora. Plebeus, nobres, todas as classes e credos têm a mesma interrogação dependurada atrás da orelha, como uma Bic azul clássica de um padeiro: "E o Corinthians, cai ou não cai para a Segundona?".
Em vez de "papai" ou "mamãe", as pequenas criaturinhas que começaram a falar nesta semana já se viram gente com a mesma dúvida a escorrer com o mingau das mamadeiras pelos cantos das bocas: "Cai ou não cai?". Nos berçários, nas filas, nos abrigos, entre os profetas da Sé e as Carmens ciganas do viaduto do Chá, o trágico bolero é o mesmo.
Ninguém quer saber se o São Paulo perdeu outra na várzea do Mercosul ou se é penta do Brasileiro quase por W.O. Parabéns, foi bom para vocês? Parabéns, de coração, mas nem pensem que vão festejar na Ilha do Retiro, o Leão do Norte entrará com a fome de tudo, embalado pelo disco novo da Nação Zumbi, com a velha charanga free jazz a roncar no juízo.
Amigo, não se fala em outra coisa nesta cidade de todos os povos. Seja contra ou a favor, o cai-não-cai dita o ritmo. Até quem odeia futebol incorporou o suspense. Nos conventos, nas sinagogas, nos templos budistas, até a madre superiora sucumbiu como uma bela noviça.
A moça de óculos, cheia de Godard nas idéias, saiu da fila da Mostra de Cinema para tirar onda com o pipoqueiro: "Cai ou não cai, gente fina?!".
Amigo, é uma praga, até S., a mais linda garota da Augusta, com aqueles olhos melancólicos de onde saltam peixes de água doce da sua origem indígena, me pára: "Cai ou não cai, poeta?". Basta ser romântico no trato à bola para ser chamado de poeta. É que S. sabe de cor os versos cruéis de Augusto dos Anjos. "Ginásio bem-feito é outra coisa", comenta Charles Bronson, chapa aqui da área, diante da verve da gazela.
Don Isaías, o mendigo altivo que colhe no lixo restos de perfumes e cosméticos para presentear as moças das calçadas, pede palavra: "O Timão já era!". Isaías nasceu no Crato, berço deste cronista, e prega um mantra: "Se tem medo de cair, não levanta de manhã da cama!".
Cai ou não cai? Não se fala em outra coisa. Minha amiga Débora, corintiana e atacante que não faria feio com a 9 do seu time, chamou-me, aflita: "Por favor, vamos convocar a torcida para o treino do sábado e para o jogo contra o Figueira!".
Como já mora em minha Cohab cardíaca sem pagar aluguel e taxas, tapo as oiças do meu corvo Edgar e atendo ao pedido: chegou o momento de ser fiel, rapaziada guerreira! O que o corvo acha? Ih, amigo, o corvo só pensa nas manchetes garrafais, faz favor, velho tipógrafo: "Corinthians rebaixado; nação alvinegra chora lágrimas de segunda!!!".
O desalmado, sem sangue nas veias e sem coração, até imagina a desolada criancinha no braço do pai, nas capas dos jornais populares.
Quando o corvo prescreve seu mundo maldito, sempre imagina uma sangrenta primeira página como na "Ronda" de Paulo Vanzolini.
O corvo e a cidade inteira, não só nos bares da avenida São João, vivem, contra ou a favor, a mais nova e ludopédica versão do TOC, o transtorno obsessivo corintiano. Isso é que é compulsão, o resto é doença.


xico.folha@uol.com.br

Texto Anterior: Vasco: Vasco contrata Valdyr Espinosa como técnico
Próximo Texto: Sumido em 2007, Ronaldo adia volta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.