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XICO SÁ
Transtorno obsessivo corintiano
Não se fala em outra coisa, por todos os lados da cidade, o que transformou o TOC em compulsão: cai ou não cai?
AMIGO TORCEDOR, amigo secador, não se fala em outra coisa
neste pueblo de São Paulo de
Piratininga, velho oeste ludopédico
da hora. Plebeus, nobres, todas as
classes e credos têm a mesma interrogação dependurada atrás da orelha, como uma Bic azul clássica de
um padeiro: "E o Corinthians, cai ou
não cai para a Segundona?".
Em vez de "papai" ou "mamãe", as
pequenas criaturinhas que começaram a falar nesta semana já se viram
gente com a mesma dúvida a escorrer com o mingau das mamadeiras
pelos cantos das bocas: "Cai ou não
cai?". Nos berçários, nas filas, nos
abrigos, entre os profetas da Sé e as
Carmens ciganas do viaduto do Chá,
o trágico bolero é o mesmo.
Ninguém quer saber se o São Paulo perdeu outra na várzea do Mercosul ou se é penta do Brasileiro quase
por W.O. Parabéns, foi bom para vocês? Parabéns, de coração, mas nem
pensem que vão festejar na Ilha do
Retiro, o Leão do Norte entrará com
a fome de tudo, embalado pelo disco
novo da Nação Zumbi, com a velha
charanga free jazz a roncar no juízo.
Amigo, não se fala em outra coisa
nesta cidade de todos os povos. Seja
contra ou a favor, o cai-não-cai dita o
ritmo. Até quem odeia futebol incorporou o suspense. Nos conventos, nas sinagogas, nos templos budistas, até a madre superiora sucumbiu como uma bela noviça.
A moça de óculos, cheia de Godard
nas idéias, saiu da fila da Mostra de
Cinema para tirar onda com o pipoqueiro: "Cai ou não cai, gente fina?!".
Amigo, é uma praga, até S., a mais
linda garota da Augusta, com aqueles olhos melancólicos de onde saltam peixes de água doce da sua origem indígena, me pára: "Cai ou não
cai, poeta?". Basta ser romântico no
trato à bola para ser chamado de
poeta. É que S. sabe de cor os versos
cruéis de Augusto dos Anjos. "Ginásio bem-feito é outra coisa", comenta Charles Bronson, chapa aqui da
área, diante da verve da gazela.
Don Isaías, o mendigo altivo que
colhe no lixo restos de perfumes e
cosméticos para presentear as moças das calçadas, pede palavra: "O Timão já era!". Isaías nasceu no Crato,
berço deste cronista, e prega um
mantra: "Se tem medo de cair, não
levanta de manhã da cama!".
Cai ou não cai? Não se fala em outra coisa. Minha amiga Débora, corintiana e atacante que não faria feio
com a 9 do seu time, chamou-me,
aflita: "Por favor, vamos convocar a
torcida para o treino do sábado e para o jogo contra o Figueira!".
Como já mora em minha Cohab
cardíaca sem pagar aluguel e taxas,
tapo as oiças do meu corvo Edgar e
atendo ao pedido: chegou o momento de ser fiel, rapaziada guerreira!
O que o corvo acha? Ih, amigo, o
corvo só pensa nas manchetes garrafais, faz favor, velho tipógrafo:
"Corinthians rebaixado; nação alvinegra chora lágrimas de segunda!!!".
O desalmado, sem sangue nas
veias e sem coração, até imagina a
desolada criancinha no braço do pai,
nas capas dos jornais populares.
Quando o corvo prescreve seu mundo maldito, sempre imagina uma
sangrenta primeira página como na
"Ronda" de Paulo Vanzolini.
O corvo e a cidade inteira, não só
nos bares da avenida São João, vivem, contra ou a favor, a mais nova e
ludopédica versão do TOC, o transtorno obsessivo corintiano. Isso é
que é compulsão, o resto é doença.
xico.folha@uol.com.br
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