São Paulo, sexta-feira, 27 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FUTEBOL

A cara do Brasil

MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA

O Brasil seria muito melhor se tivesse a cara da seleção feminina de futebol que ontem conquistou a prata. A seleção tem a cara do Brasil. O Brasil não tem a cara dela. A seleção tem a cara do Brasil na pobreza atávica das suas jogadoras. Falta ao Brasil a cara da seleção porque o país não descobriu que fracasso não é destino que não se dribla e desgraça nunca será vocação irremediável.
A medalha inédita, apesar da dor do título escapado dos pés de quem jogou muito mais, tem a cor da vitória e da virada de quem veio do quase nada. As norte-americanas escaparam porque a trave segurou duas bolas e as brasileiras foram garfadas num pênalti.
Quando o técnico Renê Simões anunciou o Projeto Alquimia Olímpica, muitas atletas nunca tinham sido apresentadas a um ginecologista.
Elaine só levantara R$ 90 para pagar a taxa de passaporte por graça da generosidade do dono de uma funerária. Das 18 garotas, 16 peitaram parentes e amigos para impor a vontade de jogar. Laços familiares se dilaceraram. São histórias contadas pelo repórter Jorge Luiz Rodrigues.
O repórter Fábio Seixas contabilizou: dois terços estão sem emprego. Algumas abandonaram o ganha-pão na Europa para arriscar o sonho olímpico. Muitas toparam um tratamento para não menstruar nos Jogos e fugir da maldita TPM, como escreveu o repórter Sérgio Rangel. Boa parte, cinco meses atrás, escancarava gordurinhas de sobra e resistência de menos.
O repórter Helvídio Mattos visitou a casa de madeira de Maycon. Mostrou como a goleira Maravilha treina, solitária, com ajuda de um parente. A adolescente Kelly é filha de empregada doméstica. O futebol feminino foi a única modalidade brasileira em Atenas que não recebeu verba de incentivo fiscal. O time, na maioria, é de amadoras. Trocou os tapas do passado pelas mãos dadas nos gramados gregos.
Os cabelos loiros e os sobrenomes nórdicos dos nossos admiráveis iatistas são raros entre as futebolistas. A maioria é negra e mulata como Pelé e Ronaldinho. Bimba, quarto na Mistral, bancou as despesas de 20 competidores para morar com ele em Búzios e treinar no mar. As gurias, castigadas pelo desamparo também no futebol, só esqueceram o desamor próprio quando Simões bolou um plano de acarinhamento.
O que me importa se a Olimpíada consolidou a impressão de que o futebol das mulheres está a anos-luz do alto rendimento que se vê no dos homens? Que, para superar o tédio habitual da modalidade, será preciso reinventá-la? Diminuir o peso da bola, o tempo de jogo, as dimensões do campo...
Poderia ser bolinha de gude, o que fosse. Calhou de ser o futebol, a alma do Brasil. Para nossas jogadoras, o ouro está logo ali à frente. A grande história de Cristiane, Marta, Formiga, Pretinha, Juliana e companheiras há de embalar o país que talvez tenha, um dia, a cara do triunfo. E não só no esporte.

Cor
O branco do Corinthians ficará mais branco? Depende de como lavar a camisa.

Caso de polícia
Com os milhões de dólares que entraram no Flamengo na última década, é um escândalo o clube não ter um centro de treinamento. A ida para o CT do ex-zagueiro Oscar, por falta de um próprio, sintetiza a tragédia rubro-negra.

Cultura inútil
O Flamengo tem um goleiro chamado Getúlio Vargas. O Fluminense, Fernando Henrique. Vanderlei é Luxemburgo por causa da revolucionária alemã Rosa. A irmã do técnico se chama Anita Leocádia, homenagem à filha de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes.

E-mail mario.magalhaes@uol.com.br


Texto Anterior: Dualib admite negociação com magnata russo
Próximo Texto: Panorâmica - Futebol: Vélber sente dor, e Cuca tem novo problema
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.