São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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Jogador batia em meninos maiores e ajudava treinador a levar basquete à periferia de sua cidade

Nenê evoluiu no jipe e "na mão"

DO ENVIADO ESPECIAL A SÃO CARLOS

Hoje na NBA, Nenê teve um início conturbado no basquete.
De personalidade forte e agressiva, o garoto de dez anos trouxe problemas para seu professor, Nivaldo Meneghelli, nos primeiros três anos de treinamentos.
"Ele sempre foi briguento, sempre queria pegar o jogador que não passava a bola para ele. "Eu quero a bola, quero a bola", ele gritava. E xingava todo mundo", conta Meneghelli. "Isso ele com 11, 12 anos, e o outro com 16, 17."
Meneghelli diz ter sido difícil ter de "segurar as pontas" e continuar a bancar o atleta. "Comecei a passar dificuldades com o moleque porque, além de não pagar nada, ainda batia nos outros."
O "segurar as pontas" ele exemplifica citando um dos muitos telefonemas pedindo a expulsão de Nenê, visto como uma ameaça física aos colegas de aula.
- Quem é o Nenê, aquele moreno? Ele tá batendo no meu filho na saída [da escola], dizia um pai, indignado.
- Quem é o seu filho?, questionou Meneghelli.
- O João.
- Mas o João tem 17 anos, o Nenê tem 12!
- Então! Ele tá batendo no meu filho...
"Até os 13 anos, o Nenê foi um menino muito rebelde. Brigava, corria atrás da molecada, jogava a bola em todo mundo, ia em cima do professor. Punha o pé na quadra era isso. Perdi vários alunos por causa dele", diz Meneghelli.
O técnico não sabe exatamente dizer o porquê. "A família dele sempre foi tranquila. Acho que é mais o lugar onde ele morou, a rua, o campinho de futebol."
Entretanto, a partir dos 14 anos, Nenê, sempre orientado por Meneghelli, "transformou" sua agressividade. Não mais a extravasava fisicamente nos companheiros, e sim verbalmente.
"Com as competições, começou a se soltar mais, queria sempre jogar, estar em quadra, ganhar. Passou a ser exigente com os colegas de time, a pegar no pé deles, inclusive dos mais velhos."
"Hoje ele está na NBA por essa personalidade. Na quadra, não quer saber se quem está do outro lado é o Oscar [Schmidt, o maior cestinha do basquete brasileiro], se é o Michael Jordan. Para ele, é só mais um rival, e ele vai para cima mesmo", acredita Meneghelli.

Compromisso
O treinador passou a centrar o jogo do time de São Carlos em cima de Nenê nos campeonatos das ligas regionais. Atuava até nas categorias acima de sua idade, jogando ao lado de, ou enfrentando, meninos mais experientes.
Com sua altura e temperamento, isso não era problema. Frequentemente, figurava como o destaque da equipe.
Os campeonatos seguiam, um após o outro, Nenê em todos eles.
E um dia Meneghelli percebeu o quanto seu pupilo dava valor ao basquete e aos ensinamentos que o tutor lhe prestava. Foi em uma decisão de torneio da categoria infanto-juvenil (até 16 anos; Nenê ainda tinha 14, era infantil), contra um time de Ribeirão Preto.
"Perdemos o jogo por um ponto, ele me abraçou, pediu desculpas, disse que fez o que pôde e emendou: "É que minha avó morreu, está sendo enterrada, e eu estou aqui jogando. Porque tenho um compromisso com você"."
"Aquilo me comoveu."
O compromisso era mesmo para valer. Nenê ficou aos cuidados de Meneghelli de 1992 a 1999 e o ajudou a superar a época das "vacas magras". Era 1995. A "febre Michael Jordan" estava na entressafra -o jogador curtia sua primeira aposentadoria, tentava a sorte no beisebol-, e o número de alunos na escola do treinador caiu para 30, 35 no máximo.
Com pouco dinheiro -teve que deixar o local, alugado, onde dava suas aulas e se empregar em um clube-, Meneghelli foi à prefeitura e captou verba para um projeto com crianças carentes, o qual batizou de "jeepball" e foi feito na esteira de uma conversa com os técnicos Jorge Guerra, o Guerrinha, e Carlos Alberto Rodrigues, o Carlão, que lançaram a idéia em Franca (SP) e a apresentaram em clínica em São Carlos.
"Eles vieram com um jipe importado com uma tabela na traseira. Montamos numa praça, foi uma loucura", diz Meneghelli. "Falei: terei um negócio desses."
Dito e feito: conseguiu comprar um jipe de segunda mão, adaptou a cesta na parte posterior e foi a campo, à periferia, três vezes por semana, levando Nenê a tiracolo.
"Mais para frente consegui um outro jipe, um Toyota, e fazia torneios de street, três contra três, duplas, arremessos. O Nenê me acompanhava e ajudava a organizar. Sempre ao meu lado, comigo. E a molecada rachava."
O "jeepball" durou até 2000, quando o prefeito Newton Lima Neto (PT) assumiu a gestão municipal e encerrou a empreitada.
Ricardo Moralles, assessor técnico da Secretaria de Esportes e Lazer de São Carlos, explicou o motivo: Meneghelli perdeu o "cargo de confiança" que tinha na prefeitura. Segundo Moralles, outros projetos com crianças, como o "Campeões do Futuro", estão em andamento no município.

Pé na estrada
Sem o "jeepball", Meneghelli centrou suas atenções em sua escola de basquete, em um novo terreno alugado. E viu Nenê enfim deixar sua cidade natal, com destino a Barueri (Grande SP), onde o Vasco do Rio fizera parceria com a prefeitura para a disputa do Paulista-99 e do Brasileiro-2000.
Acabou pouco utilizado pelo treinador porto-riquenho Flor Melendez, que assumiu o time em substituição a Carlão (um dos idealizadores do "jeepball").
"Lá, ele sofreu. Me ligava chorando. Não entendia o [portunhol] que ele [Melendez] falava. Pedi que tivesse muita paciência", afirma Meneghelli.
O investimento do Vasco na filial, contudo, acabou no mesmo ano, e Nenê foi absorvido pela matriz. Lá, estourou. Disputou um bom Campeonato Nacional em 2001 (médias de 7,9 pontos e 5,9 rebotes em 20 minutos por jogo) e teve chance na seleção brasileira de Hélio Rubens, seu treinador também no clube carioca.
Para Meneghelli, a chegada ao basquete do Rio foi fundamental na evolução do jogo de Nenê. "Lá, ele pegou seu primeiro sparring, o Vargas [pivô dominicano], que tinha uma baita envergadura."
No ano passado, Nenê também chamou, pela primeira vez, a atenção de olheiros estrangeiros, incluindo a do americano Michael Coyne, hoje seu agente na NBA, que soube do atleta após sua performance nos Goodwill Games-2001, na Austrália.
Nas semifinais da competição, diante dos EUA, Nenê marcou oito pontos, apanhou sete rebotes e deu cinco "tocos" nos 18 minutos que esteve em quadra. O Brasil levou a partida para a prorrogação, perdeu e voltou com o bronze.
Foi o que resultou no contato de Coyne com o canadense José Santos, que viabilizou a ida do atleta aos EUA em março deste ano.
Desde então, Meneghelli tem falado pouco com Nenê, algumas vezes por telefone, a maioria delas por e-mail. "Nos falamos a cada 15, 20 dias. Ele é muito grato a mim, sempre fala: "Estou aqui por sua causa, você que me ensinou"."
Questionado se não espera algum tipo de recompensa de seu ex-atleta, que hoje recebe em dólar, ele não demonstra grande entusiasmo. "Ele tem comentado comigo que eu vou ter uma surpresa. Não fala o que é, só me pede para ter calma. Só falo que continuo trabalhando honestamente, não posso ficar na expectativa de que ele vai me ajudar."
E deixa transparecer, após mais uma dose de melancolia, uma ponta de esperança e um desejo.
"Aqui tenho que ser técnico, dirigente, pai, psicólogo. Falta estrutura, há um acúmulo de atividades. Até acredito que ele irá fazer alguma coisa. Não me dar dinheiro, mas montar uma escolinha, formar alguns núcleos. Se vier, vai vir do coração dele, não posso pedir. Aguardo a surpresa trabalhando, dando aulas, garimpando meninos... Gostaria de descobrir mais Nenês." (LUÍS CURRO)


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