São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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FUTEBOL
História de torcedor

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

F alamos muito de jogadores, técnicos e até de dirigentes, mas nos esquecemos dos torcedores. Sem um grande público, não há bom espetáculo. Nada mais tedioso e frustrante do que jogar num estádio vazio.
Em vez de atrair os torcedores com carinho, segurança e conforto, os dirigentes brasileiros tentam desprezá-los.
Como disse um torcedor, após os incidentes na decisão da Copa São Paulo, a Federação Paulista, antes de colocar moças bonitas para dançar, deveria cuidar da segurança e do conforto do espetáculo.
Há torcedores de todos os tipos: participativos, solitários, extrovertidos, tímidos, violentos, dóceis, entendidos, palpiteiros ... A maior parte possui várias dessas características. Todos têm, em comum, a paixão por seus clubes e/ou pelo futebol.
Os torcedores participativos, ou sociais, geralmente são extrovertidos. Vão para o estádio com bandeiras e camisas de seus times. Torcem, brincam, dançam e cantam com o grupo. Gostam da vitória e dos gols.
O restante é detalhe. Para eles, o futebol representa uma catarse e uma grande alegria.
Os torcedores solitários geralmente são tímidos e entendidos. Uns roem as unhas, olham para o relógio e rezam. Sofrem mais que os participativos.
Outros não falam, mas prestam atenção em todos os detalhes do jogo. Conhecem tudo de futebol. Gostariam de ter um celular para passar suas opiniões ao técnico.
Assim como nós comentaristas, têm sempre uma fórmula mágica de mudar o jogo.
A maioria dos torcedores é dócil e responsável.
Os violentos são poucos, mas perigosos. A presença de um chefe agressivo numa torcida organizada contagia os outros.
Os violentos sentem-se protegidos pelo chefe e pelo grupo. Não se consideram responsáveis por seus atos. O responsável é o grupo. Os instintos agressivos liberam-se e propagam-se rapidamente. Uma tragédia.
E os marretinhas? Reclamam até da vitória de sua equipe. Para eles, todos os jogadores são pernas-de-pau.
Às vezes parecem com os palpiteiros, que ficam atrás do túnel xingando o técnico e pedindo substituições.
Há ainda os ""amigos íntimos" dos jogadores. "Vai Peixe (Romário), amanhã nos encontramos na praia!." "Guilherme, não foi isso o que combinamos!"
Os outros torcedores ficam curiosos e não tiram o olho do companheiro.
Jogadores com a mesma qualidade técnica não são tratados pelos torcedores da mesma maneira. Eles elegem seus xodós, amparados em outras razões misteriosas e desconhecidas.
Os sentimentos são transmitidos de torcedor para torcedor. Sem palavras. É a comunicação analógica, inconsciente e intuitiva. Parece até que ensaiaram a vaia ou o aplauso.
Os craques e os raçudos são os mais aplaudidos.
Os raçudos não precisam atuar bem. A maior parte dos torcedores sabe diferenciar o verdadeiro raçudo do enganador, que corre atrás da bola perdida, abre os braços para dizer que a culpa não é dele, beija o escudo do clube, jura amor eterno e diz que, desde criancinha, torce para seu novo clube.
Há dois anos, assisti a uma partida na arquibancada de um estádio italiano.
Lá, os torcedores gritam, aplaudem, vaiam e xingam como os brasileiros. Nem as queridas ""mamas" são poupadas.
Na minha infância, eu adorava ir ao estádio com meu pai.
Ele não perdia nem os bate-bolas do América.
No domingo (naquele tempo o jogo principal era nesse dia), íamos cedo.
A festa começava no ônibus.
Cantávamos e gritávamos os nomes de nossos clubes e ídolos.
Havia discussões, mas raramente brigas.
No estádio Independência, gostava de assistir as partidas de pé, na parte mais baixa da arquibancada, uns cinco metros acima do gramado, protegido por uma barra de ferro.
Dali, podia ver de perto a face cansada dos jogadores (nem todos), o suor pelo corpo, a alegria de se fazer um gol e a tristeza de perdê-lo. O futebol tornava-se mais humano.
Numa decisão do Campeonato Mineiro entre Siderúrgica e América, Noventa, craque do Siderúrgica, caiu, gritando de dor, bem perto de mim.
Depois de vê-lo ser examinado, escutei o repórter falar: ""Noventa fraturou o braço e será substituído".
Nesse tempo não havia patrocinador para completar a frase.
Quando Noventa caminhava em direção ao vestiário, chorando de dor e tristeza, apareceu o truculento técnico Yustrich e deu a ordem: ""Ele não vai sair, doutor. Coloque uma tipóia no braço, que ele vai voltar para o campo".
Ouvi tudo.
O médico e o jogador obedeceram a ordem do técnico.
Noventa voltou e fez o gol da vitória.
Retornei à minha casa triste com a derrota do América, mas ao mesmo tempo alegre.
Testemunhei o grande assunto da semana.
Ficou na história.
Os repórteres deveriam ter me entrevistado.
Para mim, Noventa tornou-se um herói.

E-mail - tostao.folha@uol.com.br



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