São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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ATENAS 2004

Marla Runyan, dos EUA, tenta ser a primeira campeã entre deficientes a subir no pódio também nos Jogos

Cega persegue feito inédito na Olimpíada

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Gargalhada geral na sala de aula. Marla Runyan engasga, tenta seguidas vezes, mas não consegue soletrar em voz alta as palavras escritas no quadro-negro.
Com os destroços da dignidade que lhe restaram, foi para casa e contou o fato para sua mãe. Acabou nas mãos de um oftalmologista, em busca de explicações para o incidente. E encontrou.
A garota de nove anos sofria de uma doença degenerativa da visão. Ficaria praticamente cega nos anos seguintes. Não havia cura.
O vaticínio se cumpriu. Hoje, aos 35 anos, Runyan tem apenas 5% de visão. Nada que a impeça, porém, de tentar um feito inédito nos Jogos de Atenas, em agosto.
Se chegar ao pódio na Grécia nas provas de atletismo, ela vai se tornar a primeira competidora a conseguir medalha na Olimpíada após triunfar na Paraolimpíada. Marla foi ouro em Barcelona-1992 e Atlanta-1996 nos eventos destinados a deficientes visuais.
"A visão sempre criou obstáculos para mim. Mas um dia percebi que, treinando muito, eu poderia competir com os melhores. Sei que posso chegar à Grécia com chances de medalha", conta a corredora norte-americana à Folha.
O currículo mostra que a afirmação não é pretensiosa. Desde 1998, quando decidiu se arriscar nos principais torneios da modalidade, Runyan colecionou títulos e resultados expressivos.
Em 1999, por exemplo, triunfou no Pan de Winnipeg nos 5.000 m. Nos EUA, mantém há três anos hegemonia nesse evento.
Seus resultados a credenciaram para defender o país na Olimpíada de Sydney-2000. Runyan chegou à final nos 1.500 m e concluiu sua participação no oitavo posto.
"Na época, provei para mim mesma que a minha deficiência não me impedia de ser competitiva. Ganhei confiança", diz ela.
A partir dali, deu início à melhor fase de sua carreira. Suas mais proeminentes performances foram obtidas após os Jogos na Austrália -15min05s48 nos 5.000 m, cravados no ano passado, e 4min05s27 nos 1.500 m, registrados no final de 2001.
Runyan sofre do mal de Stargardt, doença que corrompe a parte central da retina. Uma mancha escura ocupa o centro da visão. Só há alguma nitidez nas partes periféricas do campo ocular.
Seus primeiros passos no atletismo, aos 14 anos, produziram cenas tão constrangedoras quanto aquela que viveu ao não reconhecer as letras na lousa em uma escola de Santa Maria (Califórnia), cidade onde nasceu.
"Em provas longas, como os 5.000 m, eu ficava totalmente sem orientação. Uma vez, estava tão perdida que mudei completamente de rumo e passei a correr na direção oposta à das minhas rivais. Foi horrível", relata.
A degeneração da visão prosseguiu. Quando atingiu um estágio avançado -ela é considerada legalmente cega-, passou a correr com a ajuda de um guia.
Na época, deu início à sua coleção de títulos nas competições para deficientes. Em duas Paraolimpíadas, arrematou quatro ouros.
Runyan decidiu se aventurar no campo dos atletas olímpicos em 1998. Ao lado do treinador Margo Jennings, elaborou uma técnica para participar dos 1.500 m e dos 5.000 m. "Percebi que só faria uma corrida perfeita se arranjasse locais ou marcas para me orientar na pista. O tanque de areia da prova de saltos, por exemplo, estaria sempre na mesma posição do estádio, assim como o mastro onde as bandeiras são hasteadas."
Aos poucos, Runyan foi lapidando sua habilidade. Hoje, até espectadores nas arquibancadas servem como referência.
"Antes de correr, procuro encontrar na platéia pessoas obesas ou com roupas de cores gritantes. Elas são uma ótima base para marcar a minha direção."
Se realmente competir em Atenas -precisa confirmar seu lugar na seletiva dos EUA, em julho-, ela prevê uma dificuldade extra. Motivo: o Estádio Olímpico, palco das competições de atletismo.
Segundo a atleta, construções muito abrangentes criam entraves para sua técnica de orientação. Na Austrália, a praça que abrigou as corridas tinha capacidade para 113 mil pessoas. Em Atenas, há espaço para 55 mil.
"Prefiro não pensar nesses problemas. Quem estiver melhor no momento da disputa vai levar a medalha. É simples", explica ela.
O que almejar, então, para que não ocorram falhas no instante decisivo da luta pela medalha? "Um pouquinho de sorte. Isso sempre ajuda", brinca Runyan.


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