São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

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XICO SÁ

O doente aposentado


Não há nada mais triste que encontrar um amigo, torcedor fanático, desiludido de tudo de sua paixão ludopédica

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, encontro no Rio o Edmundo, o mais fanático tricolor das Laranjeiras que já vi na face da terra, tão Fluminense quanto o Gravatinha do tio Nelson Rodrigues, e eis que, diante das provocações de praxe, escuto a declaração sincera, comovente, no tom grave de locutor de tragédias: "Estou aposentado do futebol, vamos mudar de assunto".
Já havia tido notícias de camaradas que reduzem o grau da doença ludopédica depois do casamento, já sabia de um punhado de casos de desilusões históricas, já ouvira falar de muitos episódios de vira-casacas -mesmo sabendo que homem que é homem muda até de sexo, mas não muda de time-, já ouvira de um tudo, menos um caso de aposentadoria precoce como a que ora relato.
Não é que o amigo esteja chateado com o triste começo do pó-de-arroz no certame carioca, não é que o amigo ache uma vergonha tomar uma virada da Cabofriense e empatar com o Madureira. Não é um silêncio provisório, não é greve, não é protesto. Necas. Trata-se de um rapaz que nem chegou aos 40, momento doloroso e de transição na vida dos homens, e se despede do seu time.
Foi um testemunho tão dramático que parecia interpretação sincera do clássico de Marino Pinto e Herivelto Martins: "Não falem desta mulher perto de mim/ Não falem pra não lembrar minha dor/ Já fui moço, já gozei a mocidade/ Se me lembro dela me dá saudade/ Por ela vivo aos trancos e barrancos/ Respeitem ao menos os meus cabelos brancos".
Sim, amigo, os motivos são infinitos para abandonar as arquibancadas, gastaria vários cadernos deste jornal para enumerá-los, mas Edmundo, amigo, que era daqueles torcedores que têm mais milhagem de Maraca do que urubu de voo, não vê "a coisa", como se refere ao esporte, nem pela TV, nem no sofá de casa.
É capaz até de tapar os ouvidos quando passa na frente de um prédio e ouve aquele golzinho fanhoso do radinho de pilha do porteiro.
Claro que a trágica final da Libertadores, após toda a soberba de Renato Gaúcho e grande elenco, pode ter contribuído para a aposentadoria do tricolor doente. O quanto, jamais saberemos, ele se recusa mesmo a aprofundar-se sobre o tema.
A violência covarde de torcidas, até a das suas cores, também o chateou deveras nos últimos tempos. Só ele sabe o quanto foi doloroso.
Enfim, o conjunto da obra futebolística fez o amigo se desligar de uma das maiores paixões de um homem: o seu clube do peito. Se ele sente falta? Só sabemos que anda bem mais feliz e tem poupado o coração daqueles minutos perigosos de todos os finais de segundo tempo. E você, conhece outro caso desse naipe?
Para deixar de ir ao estádio, se já tínhamos as razões de sempre, agora os senhores da Fifa e suas obrigações babacas nos completaram o tanque. Que triste ver o Maracanã, domingo, com a estreia do Fla, sem uma mísera cerveja nos arredores.
Que tristeza, caso se concretize, o fim das belas feiras nos entornos de Pacaembus, Arrudas, Morumbis, Moças Bonitas, Ilhas dos Retiros, Mangueirões, Baixadas Melancólicas, Marrentões -o campo do Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, batizado de Romário de Souza Faria, ganhou o apelido de Marrentão, nada mais apropriado.

xico.folha@uol.com.br


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