São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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TONI NEGRI

O futebol consola a desgraça de a TV existir

São pelo menos 30 anos que não vou a um estádio. Não por uma decisão explícita, mas simplesmente porque isso se tornou impossível. Viajava e trabalhava muito. E, aos domingos, desejava estar com a família.
Passei muito tempo preso. Depois, no exílio, longe da minha equipe preferida. Hoje, vejo o futebol pela televisão. Ganho ou perco com isso? De fato, depois de 30 anos, estou tão afundado nesse vício que acabo me perguntando se o futebol poderia existir sem a televisão.
Sim, respondo. E ainda vivo a lembrança dos domingos de quando era menino. De um pulo, vencia o muro do estádio e me escondia no subsolo -interminável e medrosa espera- até que o jogo começasse e se dissipara o perigo de os guardas me caçarem.
Escutei muito futebol pelo rádio. E ainda existiam os filmes, mas eram documentários póstumos das partidas, um espetáculo à parte, mesmo que alguns distraídos insistissem em enfartar ao vê-los. Mas, como disse, estou convencido de que o futebol precisou da TV para atingir o título do esporte mais belo do mundo.
Foi providencial que a TV o promovesse, assim essa modalidade pôde invadir o mundo, em toda sua extensão e intensidade. Fala-se nele em todo lugar, o tempo todo. O futebol é global sem ser imperialista, e frequentemente - neste mundo jocoso- as hierarquias se invertem: os últimos se revelam os primeiros.
Em muitas cidades e nas várias classes sociais, o futebol é sinônimo de conversa, de fofoca. Heidegger fala da fofoca como sinônimo do tédio da existência e da corrupção do ser. Talvez seja verdade: posso todavia garantir que o bate-papo futebolístico é sempre um evento, um momento de criação linguística. Tanto é assim que também penetra na televisão e, de tão obstinado, a sujeita.
Portanto, se a TV não inventou o futebol, ela desde já se tornou a sublimação, o instrumento fundamental para confirmar e destruir as razões de uma vitória, para exaltar valores (e mentiras) atléticos e esportivos. O que seria de Pelé, Maradona, Platini e Baggio sem a TV? Quem se lembra dos campeões da época sem TV, a não ser os arqueólogos ou os memoriosos, cuja lembrança, sem imagem, fica muda e desfalece em um passado remoto? Os antigos Jogos Olímpicos tiveram Píndaro. Também no futebol existiram milhares de cantores épicos: os cronistas radiofônicos... Mas, paradoxalmente, foram "cantores cegos", já que nós éramos os espectadores que nada viam.
Agora temos a sorte de ter o futebol na TV, e isso nos consola da desgraça de a TV existir.
Dito isso, quero acabar esse meu "muito obrigado" aos programas sobre futebol reconhecendo que, se pudesse ir mais seguidamente aos estádios, talvez me divertiria ainda mais. Nos estádios, existe, além de tudo, o resto, aquilo que Rousseau dizia ser "o espetáculo dos espectadores" -um espetáculo muitas vezes maior que o jogo em si.
Se continuo a pensar nessa direção, porém, deveria lamentar não só ver futebol pela TV, não só não integrar a torcida de meus correligionários futebolísticos nas tribunas dos estádios, mas também lamentar não ter virado, eu próprio, um campeão...


Toni Negri, 69, filósofo italiano, é autor de "Império", entre outros



Tradução de Rodrigo Bertolotto



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