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TURISTA OCIDENTAL
Em Panmunjom, Coréias separadas por lentes escuras e uma guerra inacabada
VIAGEM AO PARALELO 38
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A PANMUNJOM
O brutamontes exagera na cara
de mau. As mãos fechadas, rijas,
parecem tentadas a desferir um
soco. As pernas permanecem entreabertas -um quadrúpede pequeno passaria entre elas. Os óculos escuros de aros dourados escondem o único movimento, o
dos olhos, que talvez o traísse.
A cartucheira, a arma, o capacete e os coturnos estão nos conformes esperados em um soldado. A
barba parece extraída com o perfeccionismo masoquista de certas
mulheres ao se depilar.
O homem não se mexe. Não faria feio num museu de cera. À vista, há uns dez iguais a ele. Imóveis.
No fundo, assemelham-se a outros militares obrigados a manter
postura marcial até a troca de
guarda. Mas um pormenor intriga: todos usam óculos escuros. E
parecem usar modelos idênticos.
Parecem, não: usam.
Só que eles não estão virados
para o sol. Alguns ficam na sombra. Um último dentro de uma
mal iluminada casa de madeira
azul com só um cômodo.
Aqui, na cidade de Panmunjom, situada no paralelo 38, acima
do Equador, óculos escuros são
peça de uniforme dos soldados da
Coréia do Sul. Faça chuva ou sol.
A providência destina-se a prevenir incidentes. O perigo, informam, é a troca de
olhares com os soldados da Coréia do
Norte, postados a
menos de 20 metros.
Pode haver um mal-entendido. Teme-se o
olhar, ocultam-se os
olhos. Panmunjom
constitui a última
fronteira da Guerra
Fria. Fica entre as
duas Coréias, países
que eram só um e foram seccionados em
1948. O Norte virou
comunista. O Sul seguiu capitalista. Em
junho de 1950, a Coréia do Norte invadiu
a vizinha. Com o suporte dos EUA e o
guarda-chuva de países reunidos pelas
Nações Unidas, a Coréia do Sul reagiu. A
China reforçou a Coréia do Norte.
Morreram mais de
2 milhões. O armistício foi assinado em
Panmunjom em julho de 1953.
Perdura até hoje. Formalmente, a
Guerra da Coréia não terminou.
Vive-se uma trégua.
Panmunjom é o epicentro dessa
tensão. Uma linha imaginária horizontal estabelecida 49 anos atrás
corta a península coreana desenhando um cinto sem ocupação
militar ou mesmo humana: 248
km de extensão e 4 km de largura
-2 km dentro de cada Coréia.
Um paraíso natural desabitado.
A esse espaço deu-se o nome de
Zona Desmilitarizada. No centro,
uma linha demarca a parte de cada país. A exceção que admite
uma restrita presença bélica é a
Joint Security Area (Área de Segurança Comum), administrada pelos dois lados em Panmunjom.
Nas bordas da Zona Desmilitarizada perfilam 1 milhão de militares em prontidão.
Localizada 62 km acima de Seul
e 215 km abaixo de Pyongyang, a
capital norte-coreana, a Joint Security Area em Panmunjom não
mede mais de 1 km quadrado.
No Sul, gerido pela ONU, há
dois prédios e um ponto de observação construído como pagode, o
antigo templo asiático. No Norte,
uma torre de observação e um
prédio maior.
Três casas azuis de madeira entre as edificações principais de cada lado têm metade do espaço em
cada território. Abrigam negociações. Na ponta de cada uma estão
os guardas. Os norte-coreanos ficam virados para o lado, fugindo
de olhares frontais. Entre as casas,
uma linha de uns 5 cm de largura
demarca os limites no chão.
Em 1984 foi bem aqui que quatro soldados morreram num tiroteio motivado pela deserção de
um turista soviético. Só se chega a
Panmunjom pelo Norte em passeios autorizados pelo governo de
Kim Jong-il, um ditador mais stalinista que o próprio Stalin, o tirano que mandou na hoje extinta
União Soviética de 1924 a 1953.
Pela Coréia do Sul só se entra de
excursão, ciceroneada em Panmunjom por um soldado norte-americano -há 37 mil militares
dos EUA na Coréia do Sul.
Na saída, em Seul, o turista que
segue de ônibus é informado que,
se acenar ou fizer qualquer sinal
para um soldado da Coréia do
Norte, será excluído. É vetado
vestir shorts, minissaias, camisetas sem manga, t-shirts e roupa
transparente. Quem tem cabelo
""grande ou desgrenhado" ou muda o visual ou não vai. Fotos são
vetadas em quase todo o trajeto
onde há militar.
A idéia do governo sul-coreano
é não passar a imagem de ""decadência". Na verdade, o Sul tem
progredido, e muito, enquanto no
Norte a fome se espalha. Na Zona
Desmilitarizada se assina um termo com a ONU se responsabilizando pela própria morte numa
""ação inimiga".
Sem nunca atravessar a fronteira, percorre-se o tour da guerra
fratricida. Vê-se um dos quatro
túneis cavados pela Coréia da
Norte sob o território inimigo. A
Ponte Sem Volta, por onde em
1976 passaram norte-coreanos
que mataram dois americanos.
Um vilarejo de 230 moradores
foi construído ao Sul. São os poucos civis que vivem na região. Conhecê-los é proibido. Ao Norte,
uma cidade de 30 prédios baixos
abriga somente militares. Lá se
avista uma bandeira sobre uma
torre de 160 metros de altura,
maior que a da Coréia do Sul, a 2
km, de 100 metros.
Os cidadãos de um país não podem ir ao outro, embora componham o mesmo povo. Famílias
estão separadas faz meio século,
num isolamento que só agora
permite alguns poucos reencontros nas montanhas.
Em 1993, o então presidente dos
EUA, Bill Clinton, disse que Panmunjom parece ser o lugar mais
assustador da Terra. Talvez tenha
exagerado. O certo é que aqui se
descobre que lentes escuras podem ser um muro ainda mais intransponível que aquele de concreto que por tanto tempo separou, em Berlim, o povo alemão.
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