São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Em Panmunjom, Coréias separadas por lentes escuras e uma guerra inacabada

VIAGEM AO PARALELO 38

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A PANMUNJOM

O brutamontes exagera na cara de mau. As mãos fechadas, rijas, parecem tentadas a desferir um soco. As pernas permanecem entreabertas -um quadrúpede pequeno passaria entre elas. Os óculos escuros de aros dourados escondem o único movimento, o dos olhos, que talvez o traísse.
A cartucheira, a arma, o capacete e os coturnos estão nos conformes esperados em um soldado. A barba parece extraída com o perfeccionismo masoquista de certas mulheres ao se depilar.
O homem não se mexe. Não faria feio num museu de cera. À vista, há uns dez iguais a ele. Imóveis. No fundo, assemelham-se a outros militares obrigados a manter postura marcial até a troca de guarda. Mas um pormenor intriga: todos usam óculos escuros. E parecem usar modelos idênticos. Parecem, não: usam.
Só que eles não estão virados para o sol. Alguns ficam na sombra. Um último dentro de uma mal iluminada casa de madeira azul com só um cômodo.
Aqui, na cidade de Panmunjom, situada no paralelo 38, acima do Equador, óculos escuros são peça de uniforme dos soldados da Coréia do Sul. Faça chuva ou sol. A providência destina-se a prevenir incidentes. O perigo, informam, é a troca de olhares com os soldados da Coréia do Norte, postados a menos de 20 metros. Pode haver um mal-entendido. Teme-se o olhar, ocultam-se os olhos. Panmunjom constitui a última fronteira da Guerra Fria. Fica entre as duas Coréias, países que eram só um e foram seccionados em 1948. O Norte virou comunista. O Sul seguiu capitalista. Em junho de 1950, a Coréia do Norte invadiu a vizinha. Com o suporte dos EUA e o guarda-chuva de países reunidos pelas Nações Unidas, a Coréia do Sul reagiu. A China reforçou a Coréia do Norte.
Morreram mais de 2 milhões. O armistício foi assinado em Panmunjom em julho de 1953. Perdura até hoje. Formalmente, a Guerra da Coréia não terminou. Vive-se uma trégua.
Panmunjom é o epicentro dessa tensão. Uma linha imaginária horizontal estabelecida 49 anos atrás corta a península coreana desenhando um cinto sem ocupação militar ou mesmo humana: 248 km de extensão e 4 km de largura -2 km dentro de cada Coréia. Um paraíso natural desabitado.
A esse espaço deu-se o nome de Zona Desmilitarizada. No centro, uma linha demarca a parte de cada país. A exceção que admite uma restrita presença bélica é a Joint Security Area (Área de Segurança Comum), administrada pelos dois lados em Panmunjom. Nas bordas da Zona Desmilitarizada perfilam 1 milhão de militares em prontidão.
Localizada 62 km acima de Seul e 215 km abaixo de Pyongyang, a capital norte-coreana, a Joint Security Area em Panmunjom não mede mais de 1 km quadrado.
No Sul, gerido pela ONU, há dois prédios e um ponto de observação construído como pagode, o antigo templo asiático. No Norte, uma torre de observação e um prédio maior.
Três casas azuis de madeira entre as edificações principais de cada lado têm metade do espaço em cada território. Abrigam negociações. Na ponta de cada uma estão os guardas. Os norte-coreanos ficam virados para o lado, fugindo de olhares frontais. Entre as casas, uma linha de uns 5 cm de largura demarca os limites no chão.
Em 1984 foi bem aqui que quatro soldados morreram num tiroteio motivado pela deserção de um turista soviético. Só se chega a Panmunjom pelo Norte em passeios autorizados pelo governo de Kim Jong-il, um ditador mais stalinista que o próprio Stalin, o tirano que mandou na hoje extinta União Soviética de 1924 a 1953.
Pela Coréia do Sul só se entra de excursão, ciceroneada em Panmunjom por um soldado norte-americano -há 37 mil militares dos EUA na Coréia do Sul.
Na saída, em Seul, o turista que segue de ônibus é informado que, se acenar ou fizer qualquer sinal para um soldado da Coréia do Norte, será excluído. É vetado vestir shorts, minissaias, camisetas sem manga, t-shirts e roupa transparente. Quem tem cabelo ""grande ou desgrenhado" ou muda o visual ou não vai. Fotos são vetadas em quase todo o trajeto onde há militar.
A idéia do governo sul-coreano é não passar a imagem de ""decadência". Na verdade, o Sul tem progredido, e muito, enquanto no Norte a fome se espalha. Na Zona Desmilitarizada se assina um termo com a ONU se responsabilizando pela própria morte numa ""ação inimiga".
Sem nunca atravessar a fronteira, percorre-se o tour da guerra fratricida. Vê-se um dos quatro túneis cavados pela Coréia da Norte sob o território inimigo. A Ponte Sem Volta, por onde em 1976 passaram norte-coreanos que mataram dois americanos.
Um vilarejo de 230 moradores foi construído ao Sul. São os poucos civis que vivem na região. Conhecê-los é proibido. Ao Norte, uma cidade de 30 prédios baixos abriga somente militares. Lá se avista uma bandeira sobre uma torre de 160 metros de altura, maior que a da Coréia do Sul, a 2 km, de 100 metros.
Os cidadãos de um país não podem ir ao outro, embora componham o mesmo povo. Famílias estão separadas faz meio século, num isolamento que só agora permite alguns poucos reencontros nas montanhas.
Em 1993, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, disse que Panmunjom parece ser o lugar mais assustador da Terra. Talvez tenha exagerado. O certo é que aqui se descobre que lentes escuras podem ser um muro ainda mais intransponível que aquele de concreto que por tanto tempo separou, em Berlim, o povo alemão.



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