São Paulo, sábado, 30 de maio de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO

"Remake" de Davi e Golias


Um gol como o de Messi contra o Manchester suscita a lembrança de outros lances e reaviva mitos antigos


O FUTEBOL tem, entre outras faculdades, a de, a cada partida, renovar velhos mitos, recontar antigas histórias, reencenar rituais fundadores. Na vitória do Barcelona sobre o Manchester na final da Copa dos Campeões da Europa, na quarta-feira, ganhou nova vida um dos episódios bíblicos mais populares, o triunfo do pequeno Davi sobre o gigante Golias, graças ao gol de Messi.
Foi uma jogada improvável: o mais baixo jogador em campo (1,69 m) salta entre uma das melhores defesas do planeta e, mesmo meio torto, cabeceia a bola, que traça uma parábola perfeita, encobrindo o enorme Van der Sar (1,97 m) e indo parar no fundo das redes.
Um momento mágico, que me fez pensar imediatamente, sem grandes elaborações, em dois outros lances cruciais, ambos da mesma Copa do Mundo, a de 1998 na França. Aliás, são três: os dois gols de cabeça de Zidane na final, contra o Brasil, e a expulsão do argentino Ariel Ortega nas quartas de final, contra a Holanda.
Por que me lembrei desses episódios? Bem, Zidane, que tinha feito pouquíssimos gols de cabeça ao longo da carreira, fez logo dois contra o Brasil. Foi como se, extremamente concentrado no objetivo da conquista, tivesse se colocado no lugar certo no instante exato.
Uma inspiração semelhante teria levado Messi, um jogador que praticamente só entra na área com a bola nos pés, a estar onde estava e fazer o que fez. Os místicos chamariam a isso de predestinação, os materialistas falariam em intuição, percepção analógica, sinestesia, que sei eu?
E a expulsão de Ortega em 1998, o que tem a ver? Bem, para quem não se lembra, o meia argentino, que muitos consideravam na época o sucessor de Maradona, foi expulso por ter dado uma cabeçada no queixo de... Van der Sar, ele mesmo, o goleirão holandês, que mostrou uma catimba autenticamente latina ao se jogar no chão como se tivesse levado um soco de Mike Tyson. A Holanda acabaria vencendo aquele jogo com um golaço de Bergkamp nos últimos minutos e indo para a semifinal contra o Brasil.
Ariel Ortega (talvez o apelido "Burrito" não seja casual), o falso herdeiro, falhou em sua tentativa de superar a desvantagem de altura. Lionel Messi, o herdeiro legítimo, venceu por outras vias. Em lugar da violência, a arte. Em vez da estupidez, a astúcia.
Talvez não haja nenhuma "moral da história" a extrair do acontecimento, mas o fato é que o gol de Messi galvanizou as atenções e emoções dos amantes do futebol nesta semana. Seu triunfo maior, evidentemente, não foi sobre Van der Sar (ainda que os argentinos possam ter-se sentido vingados), mas sobre Cristiano Ronaldo, o craque galã do Manchester.
Do alto da sua arrogância, o português que declarou ser o primeiro, o segundo e o terceiro melhor futebolista do mundo talvez tenha encarado de cima para baixo, antes do jogo, aquele garoto feio da periferia de Rosario. Ele era o príncipe, Messi era apenas um dos anõezinhos daquele time catalão, ao lado de Xavi e Iniesta. Como ousava desafiar o seu trono? Depois do apito final, o gajo precisou olhar para cima, pois Messi estava, com todos os méritos, no alto do pódio.

jgcouto@uol.com.br


Texto Anterior: Milan: Leonardo será novo treinador, afirma jornal
Próximo Texto: Corinthians se desfigura na Vila
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.