São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Molecas da rua são a cara da seleção

Atletas que estão no Mundial começaram a jogar bola na terra e no asfalto, onde a improvisação e o drible eram livres

No início, elas eram meninas solitárias em meio a legiões de garotos, para desespero dos pais, que temiam o preconceito e o futuro

DA REPORTAGEM LOCAL

Nem a ladeira do bairro da periferia de São Paulo impedia os garotos de montarem seu campinho. As duas pedras que demarcavam o gol eram colocadas no asfalto íngreme. Sorte de quem atacava para baixo.
No meio de mais de 20 garotos que todos os dias chutavam bolas por ali, destacava-se uma menina. Para desespero do pai.
A história de Aline Pellegrino, 25, é repetida na vida de praticamente todas as jogadoras da seleção de futebol.
A geração que busca hoje o inédito título mundial, às 9h, contra a Alemanha, foi formada bem longe do controle de escolinhas e clubes disseminado atualmente. Cresceu jogando bola na rua. Terreno livre para dribles, invenções, improvisos, refletidos no futebol que as jogadoras mostram agora nos gramados da Copa da China.
"Eu nem sabia que existia campeonato feminino. Descobri vendo na TV. Fiquei abismada em ver um monte de mulheres jogando. E decidi que queria fazer aquilo. Tinha uns 12 anos", relembra a zagueira.
Nas ruas em que Aline corria, só havia garotos com a bola nos pés. A contingência a obrigava a correr mais, agüentar os trancos e recorrer à técnica para superar a força física deles. Habilidades que hoje a seleção esbanja nos campos chineses.
Assim também foi formada Marta, 21, eleita a melhor jogadora do mundo pela Fifa. Pobre, ela cresceu em Dois Riachos (AL). Divertia-se na terra batida. Até quando começou a se aventurar nos clubes, no início da adolescência, tinha de dividir os gramados com garotos.
A convivência entre os meninos e elas, no entanto, nem sempre era muito amigável.
"Eu não chegava a bater neles, mas todos tinham medo de mim. E sempre me queriam no time. Aprendi muito jogando com os meninos. A jogar e a me virar", afirma Daniela Alves, 23, que corria atrás da bola com bonecas embaixo do braço.
O estilo durão foi herdado da mãe. Essa sim usava a força física contra os garotos. Edileuza jogava bola escondida, enquanto o pai estava na roça, na cidade baiana de Pedro Alexandre.
"Mas, quando eu vi minha filha correndo no meio daquele monte de menino, não gostei não. Achava um horror. Mas sempre foi a coisa de que ela mais gostou. No Natal, pedia bola. Tive de aprender a ver isso como normal", afirma.
Edileuza temia o preconceito contra as mulheres no futebol e a ausência de perspectivas. "Até hoje não dá futuro. Preocupei-me com o que ela iria fazer quando parasse", diz ela, que até dois anos atrás ainda jogava com um time feminino da região no mesmo campo em que a filha costumava brincar.
Francisco Pellegrino sofreu mais. Pai de Aline, corria atrás da filha nas ruas e nos campos para evitar que ela jogasse com garotos de Pedra Branca, bairro da zona norte de São Paulo.
"Ele gritava comigo, me tirava do meio da rua. Eu jogava escondida. Meus amigos gostavam de jogar comigo. Me avisavam quando meu pai estava vindo, me escondiam dele. Mas eu o entendo. Sofri muito preconceito. Futebol no Brasil ainda é considerado coisa de homem", afirma a jogadora.
O pai só aceitou a escolha de Aline quando foi assistir a um jogo da filha em um torneio feminino. Ela tinha só 12 anos, mas jogou em meio a mulheres mais velhas e fez cinco gols. Ele viu a partida escondido.
"Na saída, o guardador de carros fez um monte de elogios a ela, sem saber que era minha filha. Foi um divisor de águas. Ela jogava em cada lugar feio, sujo, um horror. Mas ali eu vi que tinha de assumir a Aline", declara Francisco.
Hoje o preconceito ainda é um entrave para as garotas. As ruas das grandes cidades recebem cada vez menos peladas, e as escolinhas proliferam uma forma uniforme de jogo. Mas o número de meninas cresceu, é o que observam as jogadoras.
"Quando volto para São Luís [capital maranhense], vejo muito mais garotas jogando nas ruas, nos campos", afirma Tânia Maranhão, 32, que, quando criança, arrancava as cabeças das bonecas para fazer de bola. "Me emociono de ver que ajudamos a abrir o caminho para elas", completa.(MARIANA LAJOLO E PAULO COBOS)

Texto Anterior: Pressão: Fifa quer mais apoio no Brasil
Próximo Texto: Final terá duelo dos sexos na prancheta
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.