São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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GP de Hitler na Inglaterra faz 70 anos e ainda rende

Corrida em Donington, em 1937, chocou e acordou Inglaterra, hoje "casa da F-1'

A exemplo do que fizera nos Jogos Olímpicos, um ano antes, führer queria mostrar a superioridade alemã, dessa vez com seus carros

FÁBIO SEIXAS
EDITOR-ADJUNTO DE ESPORTE

Deu na edição de 4 de outubro de 1937 da "Folha da Noite": "Os volantes allemães continuam vencendo. O grande premio automobilistico internacional de Donington disputado na distancia de 250 milhas foi ganho pelo volante allemão Rosemeyer, com carro Auto Union. Collocaram-se em segundo e terceiro lugares, respectivamente, Von Brautschitsh e Caracciola, igualmente allemães, que correram com machinas Mercedes-Benz."
A primeira página destacava um inflamado discurso de Adolf Hitler na Prússia. Relatava uma inesperada viagem de Joachim von Ribbentrop, embaixador alemão no Reino Unido, para Berlim. E anunciava o saldo de uma manifestação fascista em Southwark, Londres.
Um fato intimamente ligado a outro, e todos relacionados ao status da F-1 atual que, na madrugada, correria no Japão.
Uma história que faz aniversário: há 70 anos, Hitler mandava seus carros atravessarem o Canal da Mancha para mostrar aos desafetos ingleses, e ao mundo, a superioridade da engenharia germânica. Um movimento que guarda semelhanças com tantas iniciativas do führer, a mais emblemática no esporte, os Jogos de 1936.
Com uma diferença vital: um ano depois, deu certo. Deu muito certo. Deu tremendamente e assustadoramente certo. A ponto de estabelecer um novo paradigma para o esporte a motor, criando a base para o que se tornaria, 13 anos depois, a F-1.
"Nunca havia existido nada como aquilo. Aquele GP em Donington, em 1937, foi extremamente importante para o automobilismo", disse à Folha, em Fuji, Murray Walker, 84, mítico ex-comentarista de F-1 da BBC. E que, moleque de 14, assistiu à corrida in loco.
"As duas corridas em Donington, em 1937 e 1938, foram uma prévia assustadora da força técnica da Alemanha no pré-guerra. Os pilotos ingleses, amadores em carros do estilo senta-e-reza, foram dizimados pelo veículos monstruosos e pelo profissionalismo dos alemães", afirma a orelha de "Hitler's Grand Prix in England" (em inglês, "Os GPs de Hitler na Inglaterra), livro do historiador britânico Christopher Hilton, lançado em 1999.
O primeiro Mundial de F-1 só aconteceria em 1950. Naquela época, anos 30, o que havia eram eventos isolados, GPs espalhados pela Europa -com raras exceções, como Argel, na África, e o circuito da Gávea, no Rio. Cabia a cada marca decidir que provas correr. Pesavam o prestígio e o valor dos prêmios.
Mas, no caso da primeira viagem dos alemães à Inglaterra, a motivação foi outra. A ordem para que Auto Union e Mercedes corressem em Donington partiu do gabinete de Hitler para Jakob Werlin, relata Hilton.
(Werlin, um dos homens-fortes da Mercedes, era amigo pessoal do chanceler: publicava anúncios da montadora no jornal do Partido Nazista e foi ele que o buscou na saída do presídio de Landsberg, em 1924.)
Em 29 de setembro de 1937, sete carros alemães, quatro Mercedes e três Auto Union (embrião da Audi), começaram a treinar pela primeira vez num circuito inglês, Donington. Havia outros oito competidores, dois com Maseratis e cinco a bordo de carros locais. O gigantesco fosso entre as turmas tornou-se evidente logo.
"Foi um choque. Os carros alemães não pareciam reais. De repente, materializavam-se na sua frente, voando", diz Tich Allen, ex-repórter do "Leicester Evening Mail", no livro.
A definição do grid aconteceu em 1º de outubro e o resultado não poderia ser mais simbólico. Os oito carros alemães nas oito primeiras posições, pole position de Manfred von Brauchitsch, veterano da 1ª Guerra e sobrinho de um dos principais generais de Hitler.
A diferença entre o último alemão e o primeiro piloto local, nove segundos. Uma eternidade numa pista de 5 km.
A corrida, no dia 2 de outubro, 70 anos redondos na terça-feira, foi um passeio. A vitória foi de Bernd Rosemeyer, ídolo daquele era, com 37 segundos de folga para Von Brauchitsch.
Três meses depois, Rosemeyer morreria na tentativa de bater o recorde mundial de velocidade. Outra das demonstrações de força de Hitler.
O primeiro carro inglês, um ERA (English Racing Automobiles), chegou com distantes três voltas de atraso. O seguinte, com seis voltas de atraso. O próximo, oito voltas de atraso.
Atraso, palavra que batucou por meses a fio na cabeça dos ingleses. E que chacoalhou, acordou a indústria automobilística para um novo padrão.
Já eram tempos de alta tensão. A viagem do embaixador para Berlim tinha a Tchecoslováquia como tema. E a manifestação de sir Oswald, pai de Max Mosley, hoje presidente da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), acabou com 111 presos e 30 feridos.
Donington ainda receberia os alemães em 1938: lavada igual, ingenuidade menor. A corrida de 1939 não aconteceu: um mês antes, a 2ª Guerra foi deflagrada. Mas a lição ficou.
Após o conflito, o saco de pancadas assumiria papel-chave no crescimento da F-1.
Hoje, das 11 equipes, sete estão sediadas no Reino Unido, que acumula 12 Mundiais de Pilotos e 33 de Construtores.
Boa parte disso, ironia, graças aos "volantes allemães", suas "machinas" e a um homem com delírios de grandeza.

Colaborou TATIANA CUNHA, enviada especial a Fuji

Confira o resultado do GP do Japão de F-1 www.folha.com.br/072712

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