São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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FUTEBOL

Decreto religioso de muçulmanos exige maus-tratos para quem faz gol e uso do esporte como preparação para "jihad"

Árabes pedem cuspe e guerra a boleiros

TATIANA CUNHA
DA REPORTAGEM LOCAL

Imagine uma partida de futebol em que não existam linhas para delimitar o campo. Em que os gols não possuam travessão. Elimine a presença do juiz e suponha que os jogadores não possam usar camisetas ou shorts. Mais: que as palavras gol, falta, pênalti, escanteio e lateral não sejam utilizadas. Imagine ainda que quem marcar um gol deva receber em troca uma cusparada na cara.
Estas são algumas das regras impostas, na Arábia Saudita, a muçulmanos que queiram jogar futebol por uma fatwa (decreto religioso que pode ser emitido por qualquer um que seja proficiente e tenha conhecimento legal).
De acordo com o documento, postado em um site para discussões em 2003 e publicado na íntegra pelo diário saudita "Al-Watan", em 25 de agosto deste ano, a única serventia do esporte deve ser preparar o corpo dos atletas para o "jihad", a guerra santa.
Influenciados pela fatwa, pelo menos três atletas do Al-Rashid resolveram deixar a Arábia Saudita rumo ao Iraque para se juntar à rede terrorista Al Qaeda, segundo seus companheiros de time.
Ainda de acordo com eles, Tamer Al-Thamali e Dayf Allah Al-Harithi completaram missões suicidas. Majid Al-Sawat está preso em Mosul, no norte do Iraque.
Segundo seu pai, Al-Sawat ficou cinco meses com um grupo terrorista, mas se recusou a participar de uma missão. Um dos líderes do bando, então, lhe deu duas opções: fazer uma operação suicida ou explodir grupos de xiitas.
Após mais uma recusa, o jogador foi colocado em um carro pelo grupo, que dizia que o levaria de volta para casa. Em vez disso, Al-Sawat foi deixado só em um posto policial iraquiano. Quando o veículo foi revistado, descobriu-se que estava cheio de explosivos. As bombas só não haviam sido detonadas por uma falha.
Jafar Attas, capitão do Al-Rashid, afirmou ao "Al-Watan" que os três atletas tinham reuniões todas as quartas e as quintas-feiras e que, de fato, foram influenciados a se juntar aos terroristas pela fatwa. Há relatos ainda de que outros seis atletas também teriam sido convencidos a deixar a equipe.
Assim que souberam do caso, autoridades sauditas repudiaram a emissão do decreto religioso.
"Vamos processar os envolvidos na publicação desta fatwa em uma corte da sharia [lei islâmica baseada no Alcorão] pelo crime que eles cometeram", disse o xeque Abd Al-Aziz Ibn Abdallah Aal-Sheik, mufti (autoridade religiosa) da Arábia Saudita, que afirmou ainda que a polícia religiosa já havia sido destacada especialmente para encontrar os responsáveis. "Isto é um grande perigo. Estão tentando influenciar a nossa sociedade com este veneno."
Uma das maiores preocupações é deixar claro que este decreto não é reconhecido oficialmente. "Espero que os muçulmanos do mundo não ajam de acordo com qualquer fatwa até que se cheque sua autenticidade e sua fonte e que se verifique se foi emitida por pessoas com qualificação. Assim, ninguém que não seja expert nessa área vai emitir uma fatwa que tire as pessoas de seu caminho."
De acordo com o Departamento de Justiça da Arábia Saudita, não há mal nenhum em praticar futebol desde que todas as proibições da sharia sejam respeitadas.
"O veto a palavras como falta, pênalti e outras é um engano, já que até o profeta Muhammad usava palavras não-árabes no hadith [seus dizeres]", declarou o xeque Abd Al-Mushin Al-Abikan, consultor do departamento. "Até mesmo Allah usou palavras não-árabes em seu livro [Alcorão]. Portanto não há nada de errado em, ocasionalmente, usar uma língua que não a árabe."
Al-Abikan ainda fez questão de frisar que também não há nada de errado em seguir as normas estabelecidas internacionalmente.
"O futebol virou um esporte mundial e não pertence somente aos "incrédulos". Acredito que as condições que algumas pessoas estabeleceram para distinguir muçulmanos de "incrédulos" são radicais e vêm de uma falta de conhecimento da sharia e da literatura religiosa", finalizou o xeque.
A emissão da fatwa gerou muita polêmica na Arábia Saudita e o debate já se estendeu a outros países muçulmanos. Um dos maiores temores é que decretos religiosos como este simplesmente sirvam para afastar jovens da religião e os exponha ao extremismo.

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