São Paulo, sexta-feira, 30 de novembro de 2007

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XICO SÁ

Solitários na multidão


De ontem até o jogo contra o Grêmio, todo corintiano foi e será um dos personagens de "Esperando Godot", sozinho


AMIGO TORCEDOR , amigo secador, o homem nasce sozinho e morre igualmente mergulhado na solidão sem fim da sua própria esquisitice, como já dizia a sabedoria do velho Freud, aqui livremente traduzido por um coração monoglota. Nunca houve, em toda a existência, algo mais solitário do que um corintiano na noite de anteontem, uma das mais trágicas de São Paulo. Nem mesmo Shane, o cowboy negro, em "Os Brutos Também Amam", a grande película. Nem o "Solitary Man" da canção de Johnny Cash.
Solitário na multidão, o corintiano exibia no seu rosto o desamparo de quem acabou de saltar do parto. O assombro de ver pela primeira vez a luz do mundo ou o velório sem choro. Com uma diferença: não havia forças para o esperneio. Não havia nem o sentimento infantil do protesto contra existir, contra estar vivo e ter que obedecer aos ditames do homem e suas circunstâncias.
Não, não havia forças para xingar Kia ou Dualib. Muito menos para culpar os meninos que estavam em campo. Eles suaram como crianças em pátio de colégio ou praças de subúrbio, atabalhoados, sem rumo. Sei que erraram, mas erraram de forma inocente, como no "Amor Proibido" do cancioneiro do Cartola.
Não há como culpá-los, e o corintiano da arquibancada foi sábio nesse critério. O corintiano foi um torcedor do Grêmio, foi um torcedor do Boca, foi um torcedor corintiano das longas esperas, cantou o tempo todo, até quando engoliu a seco o gol do outro mundo de Alan Kardec. Ao final da peleja, a mais absoluta solidão dominou cada um dos alvinegros. Não havia solidariedade, dor em comum ou olhar de conforto.
Cada dor era uma dor particularíssima costurada ao peito como ponte de safena. Cada um, àquele momento, tinha o seu Corinthians a representar todas as dores do mundo. Lira, amigo, havia mais dor e solidão na caixa torácica de um corintiano do que em todos os discos de Maysa juntos. O "Salve o Corinthians" havia sido trocado, naquele instante, por "meu mundo caiu", canção que será o hino provisório alvinegro até pelo menos domingo. Os dias mais longos da vida de um corintiano. Um simples minuto se torna uma saga de Doutor Jivago.
Todos os alvinegros serão tristes Penélopes à espera do milagre da volta dos seus Ulysses. É uma espera mais longa, inclusive, do que o jejum histórico cujo fim foi celebrado com o título de 1977. Três noites que valem por 22 anos, três noites que valem por todas as mil e uma noites árabes. Da madrugada de ontem até o jogo contra o Grêmio no Olímpico, todo corintiano foi e será um daqueles personagens de "Esperando Godot", peça teatral de Samuel Beckett, um irlandês maluco que pôs dois homens na estrada perdida à espera do tudo ou nada -perder de um, perder de dez, essas coisas que só o alvinegro de Itaquera é capaz de decifrar.
É, amigo, só a solidão, essa pantera, será a companheira inseparável de cada alvinegro, como recita aqui Edgar, meu corvo agourento. "Falta pouco para o enterro da última quimera", vaticina o bípede, sempre com um verso de Augusto dos Anjos na caixola do juízo. "Vade retro, lazarento, mais respeito com as sofridas massas", discursa Gegê, meu velho bode populista que rumina o capim artificial de grandes esperanças.

xico.folha@uol.com.br


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