São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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FREE WAY
Míope, malvada ou burra?

GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha

A discussão recente sobre a possibilidade de mudança do tratamento de perpetradores de crimes hediondos é estarrecedora. Não pelo debate jurídico, sempre tão louvável e etéreo quanto o é a esmagadora maioria dos debates intelectuais, mas pelo que mostra da reação das pessoas à criminalidade brasileira.
Morei até os 18 anos no Brasil. Fui assaltado quatro vezes, sem contar arrombamentos, roubo de carros etc. Era comum colocar o relógio no bolso quando andava na rua, não caminhar à noite, não abrir a janela do carro nem parar no sinal. Depois dos 18, fui morar nos Estados Unidos e, agora, na Inglaterra. Nesse período, não fui assaltado, não tive casa arrombada, carro levado ou coisa que o valha. Caminho à noite, sozinho, com a única preocupação de que comece a nevar ou chover. Teria que ser uma besta -ou pefelista, quase a mesma coisa- para imaginar que há algo de errado com a índole do brasileiro que o leve ao crime mais do que o americano ou o inglês.
Vivemos em uma guerra civil. As estatísticas de criminalidade no Brasil são piores do que os mais sangrentos conflitos étnicos do mundo nos últimos tempos. E assim vivemos porque, desde que Cabral botou seus pés aqui, criamos um modelo exclusivista e concentracionista, em que uma elite predatória suga o máximo possível de todos que estão abaixo de si e depois usa o dinheiro ganho para murar as suas casas ou mandar seus filhos para o exterior na tentativa de ganhar alguma segurança.
Não querer enxergar isso é caso de auto-engano patológico. E o pior de tudo é que esse estado de coisas cria um ciclo vicioso: o rico passa a ver todo pobre como um bandido em potencial, então aumenta sua exclusão e o rejeita ainda mais. Vê um Estado que lhe parece incapaz de gerir o problema da segurança pública e sente-se então justificado em sua idéia de sonegar impostos, já que o imposto pago não parece estar rendendo frutos, e a segurança pode ser mais bem provida com os recursos de seu próprio bolso: uma grade mais afiada, um muro mais alto, um carro blindado ou uma arma. O Estado, já fragilizado, perde sua fonte de sustento e torna-se ainda mais incapaz de combater a criminalidade na única forma efetiva a longo prazo -que é a melhoria da condição de vida daquelas pessoas para quem a vida tem tão poucas perspectivas, que arriscá-la no crime faz sentido- e então passa ao papel de repressor -mais fácil, mas inócuo. (Como ficamos sabendo, cada vez que há fuga de presídios ou da Febem, o único objetivo alcançado por essas instituições é o aumento da irrecuperabilidade dos reclusos.) Como o sistema Judiciário não funciona para prender e julgar de forma correta quem precisa -e, num Estado exclusivista, nenhum Judiciário irá funcionar bem, pois ele tem de sempre poder dobrar as regras para livrar a quem serve, e onde alguém pode quebrar a lei, já não existe lei-, temos então o caos, vivenciado pela grande maioria dos paulistanos e chegando proximamente às demais grandes cidades.
Haveria de se perguntar por que essa elite se comporta assim. Durante muito tempo, funcionou sob a premissa -correta- de que é possível tirar do feijão da galera pra comprar caviar pra grã-finagem. O problema é que essa política tem um limite, e o limite é a pobreza absoluta. Quando ela chega e atinge as massas, passa-se a sentar num barril de pólvora. No Brasil, ele já explodiu. Da classe média pra cima, vive-se pagando o preço do sucesso com a incerteza sobre a própria vida. Anos e anos de mamatas, de propinas, de jeitinho criaram uma aristocracia que não pode dormir tranquila porque não sabe se seu filho volta vivo pra casa.
Por otimista, sempre nutri a esperança de que esses pais insones resolvessem tornar-se bons cidadãos e construir um país para todos. Que nada. Pensam só em como fraudar nota fiscal, adulterar medidor de eletricidade, subornar o fiscal certo. Encastelados em suas pequenas ilhas de prosperidade, num oceano de miséria, nem vêem que o fosso já está tomado de gente e que não demora muito pro portão cair.
Não sei se são apenas burros, malvados ou se simplesmente se enganam há tanto tempo, que já nem conseguem mais ver a realidade a sua frente. São, isso sim, hediondos. Deles é que o país deveria proteger-se.


Gustavo Ioschpe, 22, mora em Londres. E-mail: desembucha@uol.com.br


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