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FREE WAY
Míope, malvada ou burra?
GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha
A discussão recente sobre a
possibilidade de mudança do
tratamento de perpetradores de
crimes hediondos é estarrecedora. Não pelo debate jurídico,
sempre tão louvável e etéreo
quanto o é a esmagadora maioria
dos debates intelectuais, mas pelo que mostra da reação das pessoas à criminalidade brasileira.
Morei até os 18 anos no Brasil.
Fui assaltado quatro vezes, sem
contar arrombamentos, roubo
de carros etc. Era comum colocar
o relógio no bolso quando andava na rua, não caminhar à noite,
não abrir a janela do carro nem
parar no sinal. Depois dos 18, fui
morar nos Estados Unidos e,
agora, na Inglaterra. Nesse período, não fui assaltado, não tive casa arrombada, carro levado ou
coisa que o valha. Caminho à
noite, sozinho, com a única preocupação de que comece a nevar
ou chover. Teria que ser uma
besta -ou pefelista, quase a
mesma coisa- para imaginar
que há algo de errado com a índole do brasileiro que o leve ao
crime mais do que o americano
ou o inglês.
Vivemos em uma guerra civil.
As estatísticas de criminalidade
no Brasil são piores do que os
mais sangrentos conflitos étnicos
do mundo nos últimos tempos. E
assim vivemos porque, desde
que Cabral botou seus pés aqui,
criamos um modelo exclusivista
e concentracionista, em que uma
elite predatória suga o máximo
possível de todos que estão abaixo de si e depois usa o dinheiro
ganho para murar as suas casas
ou mandar seus filhos para o exterior na tentativa de ganhar alguma segurança.
Não querer enxergar isso é caso
de auto-engano patológico. E o
pior de tudo é que esse estado de
coisas cria um ciclo vicioso: o rico passa a ver todo pobre como
um bandido em potencial, então
aumenta sua exclusão
e o rejeita ainda mais.
Vê um Estado que
lhe parece incapaz
de gerir o problema da segurança
pública e sente-se então
justificado
em sua
idéia de sonegar impostos, já
que o imposto pago não
parece estar rendendo frutos, e a
segurança pode ser
mais bem provida com os recursos de seu próprio bolso: uma
grade mais afiada, um muro
mais alto, um carro blindado ou
uma arma. O Estado, já fragilizado, perde sua fonte de sustento e
torna-se ainda mais incapaz de
combater a criminalidade na
única forma efetiva a longo prazo
-que é a melhoria da condição
de vida daquelas pessoas para
quem a vida tem tão poucas
perspectivas, que arriscá-la
no crime faz sentido- e então passa
ao papel de repressor -mais
fácil, mas inócuo. (Como ficamos sabendo,
cada vez que há
fuga de presídios ou
da Febem,
o único objetivo alcançado
por essas
instituições é o aumento da irrecuperabilidade dos reclusos.)
Como o sistema Judiciário não
funciona para prender e julgar de
forma correta quem precisa -e,
num Estado exclusivista, nenhum Judiciário irá funcionar
bem, pois ele tem de sempre poder dobrar as regras para livrar a
quem serve, e onde alguém pode
quebrar a lei, já não existe lei-,
temos então o caos, vivenciado
pela grande maioria dos paulistanos e chegando proximamente
às demais grandes cidades.
Haveria de se perguntar por
que essa elite se comporta assim.
Durante muito tempo, funcionou sob a premissa -correta-
de que é possível tirar do feijão
da galera pra comprar caviar pra
grã-finagem. O problema é que
essa política tem um limite, e o limite é a pobreza absoluta. Quando ela chega e atinge as massas,
passa-se a sentar num barril de
pólvora. No Brasil, ele já explodiu. Da classe média pra cima, vive-se pagando o preço do sucesso com a incerteza sobre a própria vida. Anos e anos de mamatas, de propinas, de jeitinho criaram uma aristocracia que não
pode dormir tranquila porque
não sabe se seu filho volta vivo
pra casa.
Por otimista, sempre nutri a esperança de que esses pais insones resolvessem tornar-se bons
cidadãos e construir um país para todos. Que nada. Pensam só
em como fraudar nota fiscal,
adulterar medidor de eletricidade, subornar o fiscal certo. Encastelados em suas pequenas
ilhas de prosperidade, num
oceano de miséria, nem vêem
que o fosso já está tomado de
gente e que não demora muito
pro portão cair.
Não sei se são apenas burros,
malvados ou se simplesmente se
enganam há tanto tempo, que já
nem conseguem mais ver a realidade a sua frente. São, isso sim,
hediondos. Deles é que o país deveria proteger-se.
Gustavo Ioschpe, 22, mora em Londres. E-mail: desembucha@uol.com.br
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