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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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HELLO KITTY DESCE AO INFERNO

"Aos Treze" acerta na mira ao mostrar que é impossível ser só legal e sobreviver

Divulgação
Evan Rachel Wood (à esq.) e Nikki Reed, protagonistas de "Aos Treze"


NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA

Quais foram os últimos sacrifícios que você fez só para tentar ficar amigo de alguém? Provavelmente, você mentiu um pouquinho sobre o seu gosto musical. Se todo mundo gosta daquela banda, quem sou eu para não gostar? Também deve ter mudado algumas vezes o seu jeito de se vestir. Porque, se você não acompanhar a moda, vai ser chamada de cafona. Existe acusação mais grave?
Não se assuste. Todo mundo, alguns pouco, outros mais, faz esse tipo de coisa. Mas, às vezes, o buraco é mais embaixo. E nós acabamos fazendo coisas que realmente nos machucam só para "pegar bem" com a galera. Não, não tem nada a ver com aquele papo de mãe sobre o problema de andar com más companhias. Segundo os psicanalistas, nós fazemos isso para sermos aceitos. E, mais do que isso, para ter uma imagem boa diante dos outros. Isso porque a gente costuma usar os outros como espelho e, vez ou outra, cai no pensamento: "Se eles me acham legal, então eu sou legal", "se eles me acham péssima, eu sou péssima". Deu para entender? Isso vai ficar ainda mais claro se você for assistir ao filme "Aos Treze", baseado na experiência de Nikki Reed, atriz e co-roteirista do filme, que hoje tem 14 anos.
O filme é uma porrada no estômago. E mostra, por meio da amizade das meninas Evie e Tracy, o que, de fato, nós fazemos por pura necessidade e vontade de sermos aceitos, aprovados e amados. Em "Aos Treze", Tracy quer porque quer ficar amiga de Evie, a garota mais popular da escola.
Mas esqueça qualquer seriado sobre ser líder de torcida. O negócio aqui é mais real e mais sério. O que ela mais quer é ser alguém (ela, que, aos 13, realmente não tem idéia de quem é). A amizade das duas começa depois que Tracy prova ser legal roubando uma carteira. Ela e as amigas torram toda a grana comprando aquelas coisas fofas que são feitas especialmente para teens, como maquiagens com embalagens meigas e roupas, tudo naquelas lojas que a gente adora.
O consumo é só uma parte disso. Sim, nós precisamos usar roupa legal para sermos considerados legais. Mas também acabamos querendo ser como todo mundo. Isso significa "fazer o que os outros fazem". Ou fingir que faz.
Em um grupo de pessoas avançadinhas, quem é que nunca mentiu (ou omitiu) para sentir que não era pior que os outros? Não foi nada assim muito grave. Foi só contar para alguém, por exemplo, que já tinha transado, apesar de ser virgem. Como eles gostariam de você sabendo que você ainda é virgem?
E provavelmente você, algum dia, acabou bebendo além da conta só porque todo mundo estava bebendo. Ou quem sabe tenha experimentado aquela droga nova só porque todo mundo faz isso. Mais uma vez, vamos lembrar que isso aqui não é papo de mãe. Não estamos falando de "alguém jogar coisas na sua bebida", mas, sim, de você fazer algo só porque o rebanho todo está fazendo.
No filme, a menina busca tão desesperadamente essa aceitação que começa a se perder muito e muito. Ela compra roupas, cheira cola, briga com a mãe, rouba e quer ser muito sedutora.
Claro, se você quer ser aceita, tem também de ser amada. E existe maneira mais eficiente de fazer isso do que usando uma calça colante, uma blusa curta que deixe a barriga bem à mostra (de preferência mostrando um piercing no umbigo)? No filme, as duas amigas fazem isso. E vão além, tentando seduzir os garotos. De preferência os meninos do rap, porque elas também querem ser "bad girls". Mas até os manos se assustam. Em uma das cenas, as duas agarram um garoto e insinuam um "amor a três". O cara, apavorado, foge das duas, deixando as meninas com muita raiva.
O sexo, ali, é só para "pegar bem com os outros". Ninguém se envolve com ninguém, e romance é algo que parece não existir. No desespero, ecoam os gritos de mãe e filha que não se entendem, mas parecem estar dizendo uma para a outra: "Pelo amor de Deus, eu existo".
Na falta desse entendimento, o mais importante acaba sendo a opinião da amiga, que vai dizer (sem palavras) se você é cool e bonita. Ou seja, se você existe. O psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Ilustrada, diz que, quando perguntamos a alguém se a nossa roupa está boa ou se o nosso cabelo é legal, na verdade, estamos perguntando: "Quem eu sou?". Parece viagem. Mas pense um pouco e descubra que isso faz sentido.
E, da próxima vez que você for fingir que gosta do Eminem só porque todo mundo gosta, pense se não vale a pena assumir o que gosta de verdade.



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