São Paulo, segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

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quadrinhos

América dos fracassados

O anti-herói americano Harvey Pekar, que tem álbum em conjunto com Robert Crumb lançado agora no Brasil, fala ao Folhateen sobre sua vidinha mais ou menos

CARLOS MINUANO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Ele é autor de uma série de quadrinhos, "American Esplendor", que se tornou um fenômeno cultural, publicada em 25 países. A série virou filme, vencedor do Festival de Sundance em 2003, e por aqui ganhou o nome de "Anti-Herói Americano".
Essa é a essência de Harvey Pekar, 67, um cara que não quer se enquadrar no estilo de vida globalizado e tenta ganhar a vida com seu jeitão de perdedor.
Harvey, 67, nasceu na pequena cidade americana de Cleveland (Ohio) onde vive até hoje. Tornou-se celebridade com suas histórias em quadrinhos baseadas em si mesmo e em seu cotidiano, desenhadas por vários cartunistas, entre eles seu amigo Robert Crumb.
A série, que acaba de completar 30 anos, ganhou recentemente uma edição com suas primeiras histórias, desenhadas por Crumb, "Bob & Harv -Dois Anti-Heróis Americanos" (Conrad Editora, 104 págs., R$ 33). De sua casa, por telefone, o escritor falou ao Folhateen sobre seu tema preferido, a vida comum.

 

FOLHA - Como surgem suas histórias?
HARVEY PEKAR
- Minha inspiração vem de minhas reclamações. Faço isso há muito tempo e acabei ficando perito nessa função. Meu universo é a vida mundana, real. A escolha da fila certa em um supermercado, a rotina maçante no trabalho, a falta de dinheiro. No lugar de vilões ou heróis, falo de pessoas comuns com seus dilemas, manias e bizarrices. Já trabalhei como arquivista de um hospital, do qual extraí momentos lancinantes, cômicos e, principalmente, verdadeiros. Tudo o que eu faço é autobiográfico. E quanto mais insignificante a situação é para os outros, mais importante é para mim.

FOLHA - Seus personagens são esquisitos e cheios de manias. Você também é, não?
PEKAR
- Sou um maluco, completamente obsessivo. Todos os dias, saio da cama e pergunto: "Hmm, o que vai dar errado hoje?" Teve uma noite em que meus óculos quebraram. Passei a madrugada inteira tentando consertá-los. Poderia ter feito como qualquer pessoa normal, ou seja, ter ido dormir e, no dia seguinte, resolver o problema. Mas não consigo, não é racional. Há uns dez anos, tomo remédios para controlar essas maluquices. Não sei se eles estão surtindo efeito. Mas também não vou parar de tomar para sentir a diferença. Deixe como está.

FOLHA - E a mania dos discos?
PEKAR
- Tinha uns discos de 1923, mas tive que me desfazer, não tenho mais lugar para guardar em casa. Aqui só cabem meus livros e meu material de trabalho. Minha mulher é doida, me fez pôr tudo fora. Tenho alguns CDs, mas são poucos, porque são caros. Prefiro eles aos vinis: são pequenos e não têm aqueles ruídos e chiados malditos das bolachas.

FOLHA - Depois que o cartunista Robert Crumb desenhou suas histórias, o sucesso aumentou. Como é sua relação com ele atualmente?
PEKAR
- Crumb e eu somos amigos, grandes amigos. Mas a gente nunca conversa. Ele não me liga, porque é um ermitão recluso. E eu não posso ligar para ele porque é caro demais.

FOLHA - O sucesso deve ser uma droga, não?
PEKAR
- Olha, meu trabalho já foi traduzido em 25 idiomas. Mas não gosto disso. Escrevo em inglês, meu idioma é o inglês. Minha vida acontece em inglês e, se as pessoas querem saber o que escrevo, o que eu vivo, têm que saber inglês. De qualquer forma, acho bom que ainda existam pessoas interessadas no que faço. Assim, ganho um pouquinho de dinheiro.

FOLHA - E a vida de casado, também é ruim?
PEKAR
- Sou casado há 23 anos. Mas não sei por que minha mulher ainda está comigo. Não sei se eu estaria com alguém assim, feito eu. Eu me esqueço de tudo: não me lembro de nomes, não me lembro de onde ponho as coisas, não me lembro do que tenho de fazer. Também perco tudo, não consigo guardar uma chave direito. Não presto atenção em nada e estou sempre pensando em mil coisas ao mesmo tempo.

FOLHA - Como você se relaciona com as novas tecnologias?
PEKAR
- Não sei nem ligar um computador. Eu gosto do papel, do manual. O computador é impessoal e cheio de regras. Aliás, eu devo ser o último homem da América que não sabe, e nem quer, lidar com essas máquinas.

FOLHA - Como é Cleveland?
PEKAR
- Cleveland é um grande problema chamado cidade. Não tem emprego. Nossa economia é baseada na indústria, mas não conseguimos competir com a China e com o Japão. Na área de esportes também somos péssimos, o que só resulta em mais gente deprimida.

FOLHA - E a América de Bush?
PEKAR
- O Bush é um imbecil terrível! Um babaca, faz tudo errado. O aquecimento global é um problema grave, tem uma série de venenos no ar, e esse pancada nem sabe o que é isso. Se ainda fosse um idiota competente, vá lá. Mas nem isso.

FOLHA - Você teve um filme premiado sobre sua vida e suas histórias em quadrinhos. Mesmo assim não ficou rico?
PEKAR
- É claro que não! Por isso preciso continuar fazendo minhas histórias. Adoraria conhecer o Brasil, por exemplo, mas não tenho dinheiro. Aliás, a música de vocês é incrível. Adoro o Milton Nascimento. Vocês falam como se estivessem cantando, é muito bonito.


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