São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


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conto

Vinte e dois de abril de 2500, mil anos de Brasil

RUBENS FRANCISCO LUCCHETTI
especial para a Folha

Ele ainda sentia as pernas trêmulas e a cabeça a girar como um carrossel. Não sabia ao certo o que havia acontecido. Tinha uma lembrança muito vaga do estranho mal-estar que se abatera sobre ele. A sensação de uma luz penetrando como corpo sólido e se alojando no seu âmago, deixando uma sensação de não-ser, e toda sua lembrança evaporou-se.
Olhou à sua volta. Estava no cume da Torre da Sé. Através da abóbada de vidro que o cercava, pôde distinguir a cidade; os grandes arranha-céus metálicos e foscos, que não refletiam a luz do Sol. Eram grandes monumentos, que representavam a mais alta conquista da tecnologia dos Cibores. Estranhou um detalhe: nenhum autocibor cruzava o espaço.
Será que havia passado uma fração de segundo entre o estado que o dominara e aquela retomada de consciência? Ligou a AudiVisão. Na grande tela apareceu a bela Femila, a mais perfeita Cibor, construída à imagem e semelhança humana.
"Boa tarde. Vinte e dois de abril de 2500, 13 horas. Repetindo nosso boletim de 13 de março. Depois do alerta do Grande Cérebro, situado no Planalto Central, o Serviço de Segurança mantém o estado de emergência e conclama a população a respeitar as instruções do Diretor-Mor."
Treze de março, 22 de abril. O álbum de fotografias aberto na mesma página de quando perdera a consciência. Mais de 30 dias separavam as duas ações; e as imagens, cinco séculos. Sua cidade, uma província onde ainda havia divisões por bairros: Liberdade, Vila Mariana, Belém, Brás, o Ibirapuera com um grande parque... Há séculos que os museus conservavam monstros de árvores, gramas, flores e plantas.
O álbum tinha-lhe sido entregue para ser incorporado à biblioteca da Torre, o único lugar que guarda as relíquias culturais do passado, época em que a palavra escrita ainda era usada no que eles chamavam de livros, revistas e jornais. A fotografia, um processo arcaico de fixar uma imagem numa chapa sensível por meio da luz e depois copiá-la em papel. O precioso livro fora encontrado durante escavações, onde outrora erguera-se a cidade de Ribeirão Preto, e fizera parte da biblioteca particular de um abnegado bibliófilo de poucos recursos financeiros. É o que se deduzia pelos demais pertences encontrados na residência e igualmente conservados. Segundo especialistas, sua conservação deveu-se a um fenômeno muito particular do terreno em que se erguia a casa. Sabe-se que aquela região, há milhões de anos, abrigara um vulcão.
A reconstituição das fotos e dos demais livros foi um trabalho desenvolvido durante dez anos por um grupo de Cibores-mentores, para as comemorações dos mil anos do Descobrimento.
Entre as principais manifestações do dia, estava marcada para as 9 horas uma parada no Corredor do Tietê, onde, há séculos, havia existido um rio de igual nome. Nela seria demonstrado todo o poderio bélico do exército de Cibores. Às 18 horas, haveria uma missa de Ação de Graças na Catedral da Sé, reconstruída exatamente como era no ano 2000.
Com a mente cheia de interrogações, dirigiu-se ao ascensor. O Cibor que o manobrava cumprimentou-o como de hábito.
"Há dias o senhor não tem ido para casa. Certamente está tendo muito trabalho com as comemorações de hoje. Deve ter visto a parada pela AudiVisão."
O elevador desceu em segundos os 500 andares da Torre. O Cibor acompanhou-o até a porta, abrindo-a, e ainda comentou: "Parece que o Sol anda preguiçoso nesses últimos dias".
Na praça, não havia ninguém. Apenas os autocibores estacionados nos pontos. A Catedral erguia-se, majestosa, ao lado da Torre. Uma guarda de honra de Cibores perfilava-se nas suas escadarias. Preferiu caminhar. Tinha de encontrar alguém que pudesse explicar o que havia acontecido naquele dia 13 de março.
Por ser feriado, não estranhou, no primeiro momento, o Centro estar deserto, apenas guardado por Cibores que o cumprimentavam de forma cordial. Para eles, a vida corria normal, e não adiantaria interpelá-los.
À medida que caminhava e as horas se sucediam, o temor foi se apoderando de seu espírito, dando-lhe consciência de que estava completamente só. Havia apenas ele e os Cibores, e o silêncio a envolver tudo. Não se ouvia nem mesmo os incômodos zumbidos dos insetos. Numa praça, a imagem refletida de Felina repetia o mesmo boletim. Fez uma rápida refeição num dos refeitórios automáticos distribuídos por toda a cidade. Ironicamente, a máquina exigia sua identidade através da retina, e uma voz metálica informava que o débito seria lançado no seu prontuário.
Alojou-se no Centro de Comunicações. Irritava-se de ter como única companhia máquinas, diodos, magnétrons, tirostores, indutores e solencóides. O edifício comandado pelos Cibores era uma parafernália. E ficou ali, à escuta do silêncio.
Passaram-se vários dias. De repente... Uma voz! Não entendia o que a voz falava. Era um idioma estranho, e, a cada repetição, em pequenos intervalos, parecia repetir a mesma mensagem, em outra língua. Era uma emoção, depois de tanto tempo, ouvir uma voz humana e saber que não estava sozinho no mundo! Era uma voz feminina, e falava agora o seu idioma.
Como ele, também não tinha consciência do que havia acontecido com o resto da humanidade. Depois de um tempo adormecida, ela não mais encontrara seus familiares e nem outro ser humano. Apenas os Cibores.
"Não há dúvida de que somos os únicos seres vivos em toda a Terra. Por qualquer razão inexplicável, conseguimos sobreviver."
"Precisamos nos encontrar. Resido no Paraíso. Espero-o. Qual é o seu nome?"
"Adão."
"E eu me chamo Eva."


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