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conto
Vinte e dois de abril de 2500, mil anos de Brasil
RUBENS FRANCISCO LUCCHETTI
especial para a Folha
Ele ainda sentia as pernas trêmulas e a cabeça a girar como um
carrossel. Não sabia ao certo o
que havia acontecido. Tinha uma
lembrança muito vaga do estranho mal-estar que se abatera sobre ele. A sensação de uma luz penetrando como corpo sólido e se
alojando no seu âmago, deixando
uma sensação de não-ser, e toda
sua lembrança evaporou-se.
Olhou à sua volta. Estava no cume da Torre da Sé. Através da
abóbada de vidro que o cercava,
pôde distinguir a cidade; os grandes arranha-céus metálicos e foscos, que não refletiam a luz do Sol.
Eram grandes monumentos, que
representavam a mais alta conquista da tecnologia dos Cibores.
Estranhou um detalhe: nenhum
autocibor cruzava o espaço.
Será que havia passado uma fração de segundo entre o estado que
o dominara e aquela retomada de
consciência? Ligou a AudiVisão.
Na grande tela apareceu a bela Femila, a mais perfeita Cibor, construída à imagem e semelhança
humana.
"Boa tarde. Vinte e dois de abril
de 2500, 13 horas. Repetindo nosso boletim de 13 de março. Depois
do alerta do Grande Cérebro, situado no Planalto Central, o Serviço de Segurança mantém o estado de emergência e conclama a
população a respeitar as instruções do Diretor-Mor."
Treze de março, 22 de abril. O
álbum de fotografias aberto na
mesma página de quando perdera a consciência. Mais de 30 dias
separavam as duas ações; e as
imagens, cinco séculos. Sua cidade, uma província onde ainda havia divisões por bairros: Liberdade, Vila Mariana, Belém, Brás, o
Ibirapuera com um grande parque... Há séculos que os museus
conservavam monstros de árvores, gramas, flores e plantas.
O álbum tinha-lhe sido entregue para ser incorporado à biblioteca da Torre, o único lugar que
guarda as relíquias culturais do
passado, época em que a palavra
escrita ainda era usada no que eles
chamavam de livros, revistas e
jornais. A fotografia, um processo
arcaico de fixar uma imagem numa chapa sensível por meio da luz
e depois copiá-la em papel. O precioso livro fora encontrado durante escavações, onde outrora
erguera-se a cidade de Ribeirão
Preto, e fizera parte da biblioteca
particular de um abnegado bibliófilo de poucos recursos financeiros. É o que se deduzia pelos
demais pertences encontrados na
residência e igualmente conservados. Segundo especialistas, sua
conservação deveu-se a um fenômeno muito particular do terreno
em que se erguia a casa. Sabe-se
que aquela região, há milhões de
anos, abrigara um vulcão.
A reconstituição das fotos e dos
demais livros foi um trabalho desenvolvido durante dez anos por
um grupo de Cibores-mentores,
para as comemorações dos mil
anos do Descobrimento.
Entre as principais manifestações do dia, estava marcada para
as 9 horas uma parada no Corredor do Tietê, onde, há séculos, havia existido um rio de igual nome.
Nela seria demonstrado todo o
poderio bélico do exército de Cibores. Às 18 horas, haveria uma
missa de Ação de Graças na Catedral da Sé, reconstruída exatamente como era no ano 2000.
Com a mente cheia de interrogações, dirigiu-se ao ascensor. O
Cibor que o manobrava cumprimentou-o como de hábito.
"Há dias o senhor não tem ido
para casa. Certamente está tendo
muito trabalho com as comemorações de hoje. Deve ter visto a parada pela AudiVisão."
O elevador desceu em segundos
os 500 andares da Torre. O Cibor
acompanhou-o até a porta, abrindo-a, e ainda comentou: "Parece
que o Sol anda preguiçoso nesses
últimos dias".
Na praça, não havia ninguém.
Apenas os autocibores estacionados nos pontos. A Catedral erguia-se, majestosa, ao lado da
Torre. Uma guarda de honra de
Cibores perfilava-se nas suas escadarias. Preferiu caminhar. Tinha de encontrar alguém que pudesse explicar o que havia acontecido naquele dia 13 de março.
Por ser feriado, não estranhou,
no primeiro momento, o Centro
estar deserto, apenas guardado
por Cibores que o cumprimentavam de forma cordial. Para eles, a
vida corria normal, e não adiantaria interpelá-los.
À medida que caminhava e as
horas se sucediam, o temor foi se
apoderando de seu espírito, dando-lhe consciência de que estava
completamente só. Havia apenas
ele e os Cibores, e o silêncio a envolver tudo. Não se ouvia nem
mesmo os incômodos zumbidos
dos insetos. Numa praça, a imagem refletida de Felina repetia o
mesmo boletim. Fez uma rápida
refeição num dos refeitórios automáticos distribuídos por toda a
cidade. Ironicamente, a máquina
exigia sua identidade através da
retina, e uma voz metálica informava que o débito seria lançado
no seu prontuário.
Alojou-se no Centro de Comunicações. Irritava-se de ter como
única companhia máquinas, diodos, magnétrons, tirostores, indutores e solencóides. O edifício
comandado pelos Cibores era
uma parafernália. E ficou ali, à escuta do silêncio.
Passaram-se vários dias. De repente... Uma voz! Não entendia o
que a voz falava. Era um idioma
estranho, e, a cada repetição, em
pequenos intervalos, parecia repetir a mesma mensagem, em outra língua. Era uma emoção, depois de tanto tempo, ouvir uma
voz humana e saber que não estava sozinho no mundo! Era uma
voz feminina, e falava agora o seu
idioma.
Como ele, também não tinha
consciência do que havia acontecido com o resto da humanidade.
Depois de um tempo adormecida, ela não mais encontrara seus
familiares e nem outro ser humano. Apenas os Cibores.
"Não há dúvida de que somos
os únicos seres vivos em toda a
Terra. Por qualquer razão inexplicável, conseguimos sobreviver."
"Precisamos nos encontrar. Resido no Paraíso. Espero-o. Qual é
o seu nome?"
"Adão."
"E eu me chamo Eva."
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