São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


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Rock brasileiro tem 500 anos de ruindade

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
Colunista da Folha

Guitarra, baixo e bateria tiravam o sossego dos moradores de uma rua pacata, estritamente residencial, atrás do parque Ibirapuera, São Paulo.
Achei que fosse uma nova banda ensaiando suas canções ainda desconhecidas, mas o meu companheiro de caminhada notou rápido: era um cover de "Ciúme", do Ultraje a Rigor.
Aconteceu há dois sábados, em meu último dia de uma temporada de duas semanas no Brasil.
Para quem não conhece São Paulo, convém explicar. A vizinhança do Ibirapuera é só de bacanas. Algumas ruas, para o lado do bairro da Vila Mariana, nem prédios têm -só casas, que, se não chegam a ser mansões, ficam anos-luz acima do padrão médio brasileiro.
Uma delas estava para alugar e, só por curiosidade, perguntei ao guarda da rua quanto o dono queria: R$ 5 mil ("se chorar, ele faz por R$ 4.200"), preço que seria assustador até nesta região da Califórnia onde moro, uma das mais caras dos EUA.
A "homenagem" ao Ultraje saía como um tijolo sonoro do segundo andar da casa, e não poderia ser diferente. Impossível imaginar rock de qualidade sendo produzido num ambiente tão estéril e desinteressante quanto o da classe média alta brasileira.
Quem tem a paciência de acompanhar este espaço sabe que "Escuta Aqui" não vive exatamente um caso de amor com o rock brasileiro.
Entre tantos defeitos, esta coluna implica em especial com a permanente pavonada que move os principais nomes no rock and roll brazuca.
Simples artistas populares, alguns, talvez, até com certo mérito pessoal, recebem tratamento de divindades, e como tal se portam. Dão "lições de vida", procuram transmitir "ensinamentos" em suas letras, repetem sílabas e sons nos versos (imaginando que isso seja "virtuosismo poético").
Vai aqui muito de sociologia de beira de estrada, mas se notarmos qual a origem social dos tais "grandes nomes" do rock e da MPB, veremos que ela não difere muito da dos políticos dos grandes centros, ou dos yuppies que infestam uma cidade como São Paulo.
Olhando para fora, podemos tomar o contra-exemplo do americano Kurt Cobain, do Nirvana, criado pela avó num trailer furreca; ou de Ian Curtis, do Joy Division, um proletário surgido da proletária e decadente Manchester, Inglaterra.
Nesses países, é comum uma mistura que praticamente não existe no Brasil: pobreza com informação. Nem Cobain, nem Curtis, nasceram em berço de ouro, o que não significava que não tivessem acesso a quantidades imensuráveis de revistas e discos.
No Brasil, sem chance. Gostar de rock, formar uma banda, comprar CDs e instrumentos... Tudo isso exige muito mais grana, o que dá origem à grande praga do cenário pop nacional: o roqueiro-cabeça, aquele sujeito que estudou em colégio "liberal" e foi criado dentro do triângulo maconha-Caetano Veloso-casa na praia. Não há como sair rock bom daí.
Na verdade, os roqueiros brasileiros, filhos da elite retrógrada que nos afunda há 500 anos, são como legiões de Beck, o americano intelectualizado e filho de hippies, que tem exatamente o mesmo perfil de filhinhos-de-papai como os Titãs, por exemplo (feita, claro, a ressalva de que dois neurônios de Beck trazem mais idéias do que os cérebros de todos os Titãs somados).
É por vivermos neste quadro desolador de rock classe média/ descolado que uma banda como os Racionais MCs, de São Paulo, ganha tanta importância. Pela primeira vez na história do pop brasileiro, a voz da periferia vinha acompanhada de uma quantidade gigantesca de informação musical.
O ritmo seco, a poesia sintética e afiada, tudo isso parecia apontar para uma revolução de verdade e para a aposentadoria definitiva dessa gente "esperta" que tanto poderia fazer rock como escrever roteiros para o "Castelo Rá-Tim-Bum".
Infelizmente, os Racionais andam encolhidos, e as bandas que os seguiram não passam de pálidas imitações.
Continuamos sob o jugo dos sem-fibra, da yupparada paulistana e dos descolados da zona sul carioca.
Neste mês de abril, vamos comemorar mais um aniversário: 500 anos de um tedioso Brasil musical.

Para fugir da chatice do rádio brasileiro, uma dica boa para quem tem Internet. Uma das melhores rádios universitárias americanas, senão a melhor, começou a transmitir ao vivo também pela rede mundial de computadores. Trata-se da emissora da Universidade da Califórnia em Berkeley. Anote: www.kalx.berkeley.edu. O melhor horário é das 9h às 13h daqui (13h às 17h de Brasília).

cd player
"Trance State in Tongues", Zen Guerrilla
Por incrível que pareça, esta banda da gravadora Sub Pop surgiu como uma imitação do Jon Spencer Blues Explosion, mas hoje evoluiu para uma improvável combinação de punk (90%) e música negra suingada (10%). Pauleira do começo ao fim.

"Ecstasy", Lou Reed
Lou Reed já fez muito pelo rock, tanto no Velvet Underground quanto em sua carreira solo, mas há anos faz uns disquinhos mais ou menos. Este é mais um deles: não é ruim, mas espera-se muito mais do sujeito.

"Escuta Aqui", Biquíni Cavadão
Talvez exista banda pior que o Biquíni Cavadão, mas é difícil. Para piorar, eles tiveram a cara-de-pau de botar o nome desta coluna em seu novo CD. Johnny Cochran, que livrou O.J. Simpson da cadeia, será meu advogado neste processo milionário.


Álvaro Pereira Júnior, 36, é jornalista e mora em San Francisco. E-mail: cby2k@uol.com.br.


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