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free way
Portugal é que deveria comemorar
GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha
Hesito um pouco em entrar
nessa discussão sobre o Descobrimento e seus festejos,
porque é entrar no jogo do governo. Essa história de festejar
a data é invenção e obra do governo e suas centenas de milhões de reais a serem gastos.
A partir da iniciativa do governo, e apoiados em seus recursos, uma série de organismos se contagiou pelo tema e
não termina nunca esse desfile de ufanismo: dos desfiles
das escolas de samba à penca
de livros sobre o assunto, das
campanhas publicitárias às
capas de revistas.
O governo festeja a data porque, sei lá, não tem nada mais
pra festejar nesse país miserável e com tantos problemas.
Assim, ao invés de ter de se
preocupar com decisões complicadas, como continuar deixando metade da população
se esvair em subnutrição ou
usar o dinheiro para custear a
sua dívida com a banca, o pessoal de Brasília deixou de dramas e decidiu torrar o negócio
em festas. Quer imbuir na população um sentimento de
amor à pátria e deslumbramento com a nação, para que
o povo se maravilhe com o
nosso passado e esqueça os
problemas do presente.
É apenas mais um caso típico da arrogância do tucanato
que pousou na nossa sorte,
que imagina que todo o Q.I.
do populacho não equivale à
unha do mindinho esquerdo
de seu príncipe. Mas o povo
não é burro, e ninguém se engana com a propaganda do
governo.
Todo mundo sabe que o
"em se plantando tudo dá" de
Pero Vaz de Caminha ficou
nisso mesmo: uma promessa
jamais cumprida. Mas vivemos desse triunfalismo, dessa
certeza de que tudo vai dar
certo depois que arrumarmos
só dois ou três pod(e)res que
existem há muito tempo, então é natural que comemoremos essa data efusivamente,
que é pra, quando formos
realmente uma potência
mundial, podermos olhar pra
trás e não nos arrependermos
de termos sido, digamos, humildes.
Aqui, na minha ignorância,
não vejo razão para celebrar.
Comemora-se algo que a gente faz -como a Independência, a Proclamação da República, a goiabada ou guaraná- e não aquilo que fizeram
por nós. Quem deveria comemorar a data era Portugal,
que, com aquele simples ato
de largar uns navios no mar e
dizer "eu vi primeiro, é meu!",
assegurou um fluxo de ouro,
prata e índias que embelezam
suas ruas até hoje. Nós, depois
desse descobrimento, fomos
pilhados e explorados, e tivemos a enorme felicidade de
sermos inseridos em um sistema global que nos levava ouro, açúcar, pau-brasil, café e
Roberta Close a preço de banana, e nos devolvia, a preços
exorbitantes, produtos industrializados.
Poderíamos comemorar
com entusiasmo datas como a
Independência ou a Proclamação da República, se tivessem algo a ver com os brasileiros. Mas teve tanta participação desses quanto a viagem de
descobrimento. A primeira
foi decretada pelo brasileiríssimo rei português, à beira de
um riacho no cafundó do Judas, e a segunda, proclamada
por um general gripado. Os
brasileiros nunca participaram de sua história, senão na
condição de espectadores.
Não têm por que comemorar.
Todas as datas importantes da
nação foram obra de uma elite
e seu governo, e é ela que comemora agora, porque, essa
sim, tem razão para comemorar o bem-bom em que se encontra.
Presenciei "in loco" duas
festas de independência.
Uma, dos Estados Unidos,
cheia do ufanismo que só os
americanos podem justificar.
É uma festa cívica inimaginável para um brasileiro. A outra, bem mais deprimente, foi
a de 50 anos de independência
da Índia. Lá, só dois ou três
gaiatos soltaram uns tímidos
fogos de artifício, e nada mais.
Era não só um povo cônscio
de sua miséria, mas que também tinha um governo minimamente lúcido. Nós, pra variar, somos a aberração: com
uma pobreza relativa maior
que a da Índia, mas com celebrações mais imponentes que
as dos americanos.
Felizmente, essa só vou
acompanhar pelos jornais.
Deve ser uma experiência um
tanto quanto surreal ver caravelas milionárias chegando a
Porto Seguro e os VIPs ali
aterrissando de helicóptero e
jatinho, enquanto o populacho das redondezas não tem
escola, hospital ou o que dar
de comer pra suas crianças.
Que os próximos 500 anos sejam mais generosos.
Gustavo Ioschpe, 23, mora em Londres.
E-mail: desembucha@uol.com.br
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