São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


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free way

Portugal é que deveria comemorar

GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha

Hesito um pouco em entrar nessa discussão sobre o Descobrimento e seus festejos, porque é entrar no jogo do governo. Essa história de festejar a data é invenção e obra do governo e suas centenas de milhões de reais a serem gastos. A partir da iniciativa do governo, e apoiados em seus recursos, uma série de organismos se contagiou pelo tema e não termina nunca esse desfile de ufanismo: dos desfiles das escolas de samba à penca de livros sobre o assunto, das campanhas publicitárias às capas de revistas.
O governo festeja a data porque, sei lá, não tem nada mais pra festejar nesse país miserável e com tantos problemas. Assim, ao invés de ter de se preocupar com decisões complicadas, como continuar deixando metade da população se esvair em subnutrição ou usar o dinheiro para custear a sua dívida com a banca, o pessoal de Brasília deixou de dramas e decidiu torrar o negócio em festas. Quer imbuir na população um sentimento de amor à pátria e deslumbramento com a nação, para que o povo se maravilhe com o nosso passado e esqueça os problemas do presente.
É apenas mais um caso típico da arrogância do tucanato que pousou na nossa sorte, que imagina que todo o Q.I. do populacho não equivale à unha do mindinho esquerdo de seu príncipe. Mas o povo não é burro, e ninguém se engana com a propaganda do governo.
Todo mundo sabe que o "em se plantando tudo dá" de Pero Vaz de Caminha ficou nisso mesmo: uma promessa jamais cumprida. Mas vivemos desse triunfalismo, dessa certeza de que tudo vai dar certo depois que arrumarmos só dois ou três pod(e)res que existem há muito tempo, então é natural que comemoremos essa data efusivamente, que é pra, quando formos realmente uma potência mundial, podermos olhar pra trás e não nos arrependermos de termos sido, digamos, humildes.
Aqui, na minha ignorância, não vejo razão para celebrar. Comemora-se algo que a gente faz -como a Independência, a Proclamação da República, a goiabada ou guaraná- e não aquilo que fizeram por nós. Quem deveria comemorar a data era Portugal, que, com aquele simples ato de largar uns navios no mar e dizer "eu vi primeiro, é meu!", assegurou um fluxo de ouro, prata e índias que embelezam suas ruas até hoje. Nós, depois desse descobrimento, fomos pilhados e explorados, e tivemos a enorme felicidade de sermos inseridos em um sistema global que nos levava ouro, açúcar, pau-brasil, café e Roberta Close a preço de banana, e nos devolvia, a preços exorbitantes, produtos industrializados.
Poderíamos comemorar com entusiasmo datas como a Independência ou a Proclamação da República, se tivessem algo a ver com os brasileiros. Mas teve tanta participação desses quanto a viagem de descobrimento. A primeira foi decretada pelo brasileiríssimo rei português, à beira de um riacho no cafundó do Judas, e a segunda, proclamada por um general gripado. Os brasileiros nunca participaram de sua história, senão na condição de espectadores. Não têm por que comemorar. Todas as datas importantes da nação foram obra de uma elite e seu governo, e é ela que comemora agora, porque, essa sim, tem razão para comemorar o bem-bom em que se encontra.
Presenciei "in loco" duas festas de independência. Uma, dos Estados Unidos, cheia do ufanismo que só os americanos podem justificar. É uma festa cívica inimaginável para um brasileiro. A outra, bem mais deprimente, foi a de 50 anos de independência da Índia. Lá, só dois ou três gaiatos soltaram uns tímidos fogos de artifício, e nada mais. Era não só um povo cônscio de sua miséria, mas que também tinha um governo minimamente lúcido. Nós, pra variar, somos a aberração: com uma pobreza relativa maior que a da Índia, mas com celebrações mais imponentes que as dos americanos.
Felizmente, essa só vou acompanhar pelos jornais. Deve ser uma experiência um tanto quanto surreal ver caravelas milionárias chegando a Porto Seguro e os VIPs ali aterrissando de helicóptero e jatinho, enquanto o populacho das redondezas não tem escola, hospital ou o que dar de comer pra suas crianças. Que os próximos 500 anos sejam mais generosos.


Gustavo Ioschpe, 23, mora em Londres.
E-mail: desembucha@uol.com.br


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