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São Paulo, segunda-feira, 22 de setembro de 2003

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ESCUTA AQUI

Quando o som é ruim, a nostalgia vive

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA

"Escuta Aqui" detesta nostalgia. Por uma razão bem direta: à medida que os anos passam, a vida humana só melhora.
A expectativa de vida aumenta, a informação trafega mais rápido e para mais gente, as preocupações ambientais ganham voz, o conhecimento científico torna mais interessante a aventura humana e a produção cultural é melhor e mais diversa.
Você acha que o passado era maravilhoso? Pois bem: no passado, as pessoas morriam de apendicite, mesmo as que tinham acesso à melhor assistência médica. E também morriam de outras infecções banais, de doenças simples.
No passado, não existia CD, havia um aparelho chamado fonógrafo. As músicas que tocavam corações e almas eram apenas um chiado distante. A geladeira chegou aos lares americanos só em 1916. No passado, até Caetano Veloso era "revolucionário".
Nos parágrafos acima, passado quer dizer passadoS, no plural. Mas dá para entender a idéia, certo?
Agora esqueça o que você leu até aqui. Pelo seguinte: "Escuta Aqui", hoje, está nostálgica.
Nostálgica de um passado em que ainda não tinha ouvido o hediondo "Echoes", novo álbum da banda nova-iorquina The Rapture.
Lá embaixo, você vê minha idade e entende os dois pés atrás comigo mesmo quando ouço algo tão ordinário quanto The Rapture e, para dar um outro exemplo, seus conterrâneos/ contemporâneos Yeah Yeah Yeahs. Pés atrás no seguinte seguinte sentido: "Vai ver que o problema é comigo".
Entra em cena o crítico inglês Ian MacDonald (1948-2003), influência eminente sobre toda pobre alma que escreve sobre música pop neste planeta (mesmo que a pobre alma nunca tenha ouvido falar em Ian MacDonald).
Há dois meses, pouco antes de cometer suicídio, IMcD lançou no Reino Unido "The People's Music", coletânea de seus textos geniais, em que defende teses como: "Em um ambiente supersaturado de ironia e de nostalgia pós-modernas --dirigido por imperativos altamente velozes de materialismo, recompensa imediata e estilo de vida--, não existem mais condições para que floresçam os
gênios do pop e do rock de outrora".
Não que eu concorde totalmente, mas é impossível não refletir sobre o que diz o crítico inglês ao ouvir a pseudo-arte, a pompa rasa do The Rapture, um pesadelo de 11 faixas que parecem durar tanto quanto a Guerra dos Cem Anos (1337-1453).
Não há nenhuma qualidade redentora no The Rapture. Nada, zero. "Escuta Aqui" desafia até os fãs mais renitentes do novo rock de Nova York a ouvir, na íntegra, a faixa três ("Open up Your Heart"), a nove ("Sister Savior") e a 11 ("Infatuation"). Não que o restante seja mais tolerável, mas essas três superam todas as marcas de abjeção.
Resumindo essa história: o passado é necessariamente uma beleza? De jeito nenhum. As novidades são quase sempre maravilhosas? Quase sempre, sim.
Apesar disso, certas novidades medonhas fazem o passado parecer uma maravilha. Na dúvida, consulte Ian MacDonald.


Álvaro Pereira Júnior, 40, é editor-chefe do "Fantástico" em São Paulo
E-mail: cby2k@uol.com.br


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