São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DEUS NÃO MORA AQUI

Poder paralelo é quem dita as regras na favela

Fora das telas é pior

FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Cidade de Deus" puxa o tapete de quem pensa que cena de cinema não existe fora do escuro da sala.
Baseado no romance homônimo de Paulo Lins e dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o filme é recheado de imagens fortes. Acompanha, desde a infância, a trajetória de mocinhos e bandidos em uma comunidade da periferia do Rio de Janeiro e, de quebra, mostra como o tráfico se estabeleceu como poder paralelo nos morros cariocas.
Atropelando o clichê "a arte imita a vida", "Cidade de Deus" condensa em 130 minutos o que milhares de brasileiros vivem todo dia: o extremo da violência gerada pela exclusão social que costura traficantes, crianças, trabalhadores, policiais e jovens em um emaranhado só.
Longe do refúgio seguro do cinema, é bem fácil encontrar situações piores em qualquer grande cidade do país.
Em São Paulo, a reportagem do Folhateen esteve em dois bairros da periferia da cidade, no extremo sul e no extremo leste, para checar como a violência dessas regiões define a conduta de seus moradores -para o bem ou para o mal.
As duas áreas estão entre as dez que concentram o maior número de homicídios violentos da capital paulista. Também integram o grupo dos piores bairros da cidade para um jovem crescer, segundo dados do IVJ (Índice de Vulnerabilidade Juvenil) -elaborado pela Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados)- que reúne variáveis que favoreceriam a delinquência. Isso quer dizer que, nesses locais, o jovem precisa munir-se de esforço para romper o círculo vicioso que o condena à violência.

Lei fora do papel
Todos os jovens, de 13 a 22 anos, que conversaram com o Folhateen nesses bairros afirmaram que boa parte de seus amigos de infância hoje estão envolvidos no crime. Para se manter longe de qualquer confusão, segundo eles, é preciso tomar uma série de medidas: ficar longe das chamadas "amizades erradas" (turmas de bandidos ou de traficantes), manter uma relação cordial com todos, não dar sopa na rua depois das 23h, frequentar a escola e ocupar o tempo ocioso com atividades culturais e de cidadania.
Além disso, os entrevistados apontam um código de comportamento que vale para os moradores do bairro e é garantido pelo "patrão" -que pode ser um justiceiro ou o chefe do tráfico local, conhecido de todos. Trata-se de um pequeno conjunto de regras que não tem registro oficial, mas está na ponta da língua dos moradores da favela. Ele dita, por exemplo, que é proibido roubar ou estuprar dentro do bairro. A pena pela infração, no caso do roubo, seria um tiro na mão e, no do estupro, ser vestido de mulher e assassinado. Há ainda a lei do silêncio -do "não vi nada", do "não sei de nada"- e o "toque de recolher", acionado por traficantes ou moradores quando há algum acerto de contas ou quando a polícia vai invadir o local.
"A violência é o que molda nossa vida aqui. O tráfico dita as regras e manipula as pessoas", sintetiza Mauro (todos os nomes são fictícios), 21. "Os direitos humanos são uma sugestão. A lei é corrupta. Vivemos a mistura do poder paralelo com o poder público. O governo sabe disso. Polícia e bandido são café pequeno, na verdade."

Sem querer
"Nem todo mundo pensa assim, mas, para mim, uma forma de proteção é sair com quem é considerado perigoso na favela, quem comanda a área", admite Taís, 15. "Por outro lado, viro alvo dos inimigos do "patrão'", reconsidera.
Para Tomás, 18, é impossível não se envolver. "Não tem jeito porque é aqui que eu vivo. Conheço todo mundo: quem trabalha, quem rouba e quem mata." Ele conta que, mesmo quem não está diretamente envolvido é coagido com o pedido de "favores" dos traficantes (que não se pode negar) e com as rixas entre as diferentes "bocas".
"Aqui, se você sobe o morro lá pra cima, morre. Se alguém lá de cima desce aqui pra baixo, morre também", confirma Jussara, 16, que por três meses trabalhou para os traficantes da região "passando" drogas. Ela afirma que o número de garotas envolvidas no tráfico é crescente e que a falta de emprego, o desinteresse pela escola e as brigas familiares a fizeram dizer sim ao assédio do tráfico. "Um dia, a polícia me pegou, mas meu chefe fez um acerto com eles. Depois me caguetaram, e fui para a Febem. Agora quero ficar longe, mas o tráfico, por pior que seja, pelo menos sustenta a família."
Histórias de gente que não tem relação direta com o crime, mas tem a vida regulada por ele, parecem não ter fim: João, 13, quase morreu e perdeu a família numa troca repentina de tiros entre trupes rivais; Pedro, 14, tem medo de olhar para "gente que não presta" e levar um tiro; Marcela, 17, diz que sai à noite pensando se vai voltar para casa bem; e Tomás teve o lava-rápido onde trabalhava assaltado por um colega de classe. "E a culpa é de todos nós", opina Mauro.
Quando você for ver o filme, lembre-se de que aquilo é, sim, realidade.


Texto Anterior: Música: Tristeza não tem fim
Próximo Texto: Entenda como funciona o mecanismo da exclusão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.