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DEUS NÃO MORA AQUI
Poder paralelo é quem dita as regras na favela
Fora das telas é pior
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
"Cidade de Deus" puxa o tapete de
quem pensa que cena de cinema
não existe fora do escuro da sala.
Baseado no romance homônimo de
Paulo Lins e dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o filme é recheado de
imagens fortes. Acompanha, desde a infância, a trajetória de mocinhos e bandidos em uma comunidade da periferia do
Rio de Janeiro e, de quebra, mostra como
o tráfico se estabeleceu como poder paralelo nos morros cariocas.
Atropelando o clichê "a arte imita a vida", "Cidade de Deus" condensa em 130
minutos o que milhares de brasileiros vivem todo dia: o extremo da violência gerada pela exclusão social que costura traficantes, crianças, trabalhadores, policiais e jovens em um emaranhado só.
Longe do refúgio seguro do cinema, é
bem fácil encontrar situações piores em
qualquer grande cidade do país.
Em São Paulo, a reportagem do Folhateen esteve em dois bairros da periferia
da cidade, no extremo sul e no extremo
leste, para checar como a violência dessas regiões define a conduta de seus moradores -para o bem ou para o mal.
As duas áreas estão entre as dez que
concentram o maior número de homicídios violentos da capital paulista. Também integram o grupo dos piores bairros
da cidade para um jovem crescer, segundo dados do IVJ (Índice de Vulnerabilidade Juvenil) -elaborado pela Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise
de Dados)- que reúne variáveis que favoreceriam a delinquência. Isso quer dizer que, nesses locais, o jovem precisa
munir-se de esforço para romper o círculo vicioso que o condena à violência.
Lei fora do papel
Todos os jovens, de 13 a 22 anos, que
conversaram com o Folhateen nesses
bairros afirmaram que boa parte de seus
amigos de infância hoje estão envolvidos
no crime. Para se manter longe de qualquer confusão, segundo eles, é preciso tomar uma série de medidas: ficar longe
das chamadas "amizades erradas" (turmas de bandidos ou de traficantes), manter uma relação cordial com todos, não
dar sopa na rua depois das 23h, frequentar a escola e ocupar o tempo ocioso com
atividades culturais e de cidadania.
Além disso, os entrevistados apontam
um código de comportamento que vale
para os moradores do bairro e é garantido pelo "patrão" -que pode ser um justiceiro ou o chefe do tráfico local, conhecido de todos. Trata-se de um pequeno
conjunto de regras que não tem registro
oficial, mas está na ponta da língua dos
moradores da favela. Ele dita, por exemplo, que é proibido roubar ou estuprar
dentro do bairro. A pena pela infração,
no caso do roubo, seria um tiro na mão e,
no do estupro, ser vestido de mulher e assassinado. Há ainda a lei do silêncio -do
"não vi nada", do "não sei de nada"- e o
"toque de recolher", acionado por traficantes ou moradores quando há algum
acerto de contas ou quando a polícia vai
invadir o local.
"A violência é o que molda nossa vida
aqui. O tráfico dita as regras e manipula
as pessoas", sintetiza Mauro (todos os nomes são fictícios), 21. "Os direitos humanos são uma sugestão. A lei é corrupta.
Vivemos a mistura do poder paralelo
com o poder público. O governo sabe disso. Polícia e bandido são café pequeno,
na verdade."
Sem querer
"Nem todo mundo pensa assim, mas,
para mim, uma forma de proteção é sair
com quem é considerado perigoso na favela, quem comanda a área", admite Taís,
15. "Por outro lado, viro alvo dos inimigos do "patrão'", reconsidera.
Para Tomás, 18, é impossível não se envolver. "Não tem jeito porque é aqui que
eu vivo. Conheço todo mundo: quem trabalha, quem rouba e quem mata." Ele
conta que, mesmo quem não está diretamente envolvido é coagido com o pedido
de "favores" dos traficantes (que não se
pode negar) e com as rixas entre as diferentes "bocas".
"Aqui, se você sobe o morro lá pra cima, morre. Se alguém lá de cima desce
aqui pra baixo, morre também", confirma Jussara, 16, que por três meses trabalhou para os traficantes da região "passando" drogas. Ela afirma que o número
de garotas envolvidas no tráfico é crescente e que a falta de emprego, o desinteresse pela escola e as brigas familiares a fizeram dizer sim ao assédio do tráfico.
"Um dia, a polícia me pegou, mas meu
chefe fez um acerto com eles. Depois me
caguetaram, e fui para a Febem. Agora
quero ficar longe, mas o tráfico, por pior
que seja, pelo menos sustenta a família."
Histórias de gente que não tem relação
direta com o crime, mas tem a vida regulada por ele, parecem não ter fim: João,
13, quase morreu e perdeu a família numa troca repentina de tiros entre trupes
rivais; Pedro, 14, tem medo de olhar para
"gente que não presta" e levar um tiro;
Marcela, 17, diz que sai à noite pensando
se vai voltar para casa bem; e Tomás teve
o lava-rápido onde trabalhava assaltado
por um colega de classe. "E a culpa é de
todos nós", opina Mauro.
Quando você for ver o filme, lembre-se
de que aquilo é, sim, realidade.
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