São Paulo, segunda-feira, 31 de agosto de 2009

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COMPORTAMENTO

De repente, adulto

Felipe Redondo/Folha Imagem
Sabrina, 16, tomou conta da mãe, Rouse, com as irmãs mais novas

CHICO FELITTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Bruna sustenta a família. Joanderson volta correndo do trabalho para ver a mãe. Sabrina deu "aviõezinhos" de comida para a sua por anos, e Peri* adiou a faculdade. Eles têm 16, 23, 16 e 21 anos, respectivamente, mas já arcam com responsabilidades de adultos.
A maturidade exigida desde cedo "vai marcar a vida deles, por bem ou por mal", diz o psicólogo Miguel Perosa, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Crescer precocemente tem efeitos antagônicos, segundo Angela Freire, psicóloga da Universidade Nove de Julho. "Pode-se encontrar, depois, adultos que querem viver coisas da adolescência, inconsequência, experimentações. Mas também pode ser que cresçam bem, virando adultos maduros, conscientes."
O Folhateen conta como se viram jovens que, de repente, foram obrigados, pela vida, a se tornar adultos.

Café na cama
Quando uma pessoa diz que vai visitar Neusa Moreira, 55, ela responde: "Por que "visitar", tem alguém morrendo aqui?".
Definitivamente, não. A fratura causada por uma queda durante as férias no interior de Minas Gerais deixou Neusa de cama por um ano e meio.
Mas ela continua bem vivaz. Especialmente quando está zoando o filho, Joanderson Melo, 23, única pessoa que mora com ela.
Apelidado de Post It, Joanderson trabalha como auxiliar administrativo para pagar, com as duas irmãs, as contas da casa e os remédios da mãe.
Neusa diz que é "um pássaro encarcerado". Só que a gaiola, no caso, é a estrutura de pinos de metal que fica ao redor de sua perna direita, para colocar os ossos de volta no lugar.
Desde o acidente, os rolês noturnos que Post fazia minguaram. Suas noitadas foram substituídas por sessões de DVD com a mãe.
Hoje, ele sai, no máximo, para jogar futebol com os amigos. Mas fica sempre encucado se deixou os analgésicos na mesinha, ao alcance de Neusa.
Aos domingos, o filho levanta cedinho, faz o café preto, serve-o à mãe e volta a dormir. "Ele tomou um pouquinho de vergonha na cara", diz ela.
Em junho passado, Neusa fez uma cirurgia que, em breve, deve lhe devolver a mobilidade. Assim que ela ficar boa, diz Post, ele vai fazer questão de dormir até tarde nos domingos. "E do café na cama!"

Filha de família
Os R$ 560 que Bruna Santos, 16, ganha por mês, incluindo o vale-alimentação, sustentam sua casa, na zona leste de São Paulo.
Bruna trabalha como arquivista em um banco, há um ano. Queria ter "o meu próprio dinheirinho" quando se candidatou à vaga, num concurso com mais 150 pessoas. Ficou em quarto lugar.
Mas a grana para uso pessoal virou sustento da casa, há pouco mais de seis meses.
É que seu pai, Hudson dos Santos, 42, foi obrigado a parar de trabalhar por conta de uma "hérnia de disco bem doída".
Enquanto o processo de aposentadoria por invalidez não acaba, a renda de Bruna passou a ser a única da família. Sua mãe, Elaine, 43, é dona de casa.
Bruna acorda antes das 6h para ver as aulas do segundo ano do ensino médio, emenda a escola com o trabalho e volta para casa às 19h, "cansadona".
Mas não exausta. "Quando estou com os meus primos, brinco mesmo!", diz ela, que diz ser "nem adulta nem criança".
Recentemente, entretanto, ela se sentiu mais madura do que nunca. Foi no momento em que tirou da carteira os R$ 89 que pagou nas desejadas botas de camurça preta.
"Pesquisei muito antes de gastar o pouco dinheiro que me sobra, então não senti culpa de me fazer um agradinho."
Ela diz que ainda há muito a amadurecer, e que segurar essa barra a fez perceber uma coisa. "Adoro ser jovem, e não vou abrir mão disso por nada desse mundo."

Baile de debutante
O som do funk no volume máximo que Sabrina Toiana, 16, ouvia enquanto limpava a casa nunca lhe rendeu um pito de sua mãe, Rouse Toiana.
É que a mãe ficou seis anos praticamente sem sair da cama. Primeiro, estava debilitada por hepatite e cirrose. Depois, deprimida pela morte do único filho homem, atingido por um trem enquanto empinava pipa.
A casa, então, ficava sempre na escuridão, diz Sabrina. Dos nove aos 15 anos, ela zelou na penumbra pela mãe, com a ajuda das duas irmãs mais novas.
Nos piores momentos, chegaram a dar na boca de Rouse o arroz e o feijão, feitos por Sabrina, que "melhoraram com o tempo e hoje são... bons".
Quando a dispensa esvaziava, a filha saía para levantar ingredientes com os vizinhos, que sempre deram uma mão.
Quem limpa a casa hoje em dia é Rouse. Recuperada, ela voltou a trabalhar e vai ao supletivo à noite. "Vou superbem em matemática e adoro!", diz.
Já a filha não demonstra tanto ânimo. "Gosto das aulas, mas acho minhas colegas de sala chatas, muito crianças", diz.
Nos fins de semana, mãe e filha frequentam, juntas, atividades recreativas do centro comunitário de Pirituba.
É lá que Rouse planeja fazer a festa de debutante da filha, no mês que vem. Mas Sabrina não completa 17 anos em 2009? "Nunca é tarde demais", responde a mãe.

Saudade dói
Peri*, 21, ficou exultante quando passou no vestibular de economia numa faculdade pública no interior, em 2006.
Era, finalmente, a chance de se mudar de São Paulo e morar sozinho, como queria há tempos. Alugou uma quitinete e partiu para a independência -bancada pela mãe, que vive da renda de imóveis da família.
Mas a alegria da casa "própria" durou só dois meses. Ao telefonar para a mãe, percebia que havia algo de errado. Era a saudade. Mas não só.
O problema é que a "síndrome do ninho vazio" piorou o quadro de esquizofrenia que ela apresentava há anos.
"Quem tem a doença precisa de estabilidade e, como somos só eu e ela, ela vive muito para mim", diz ele, cujo pai é morto.
Depois de ponderar brevemente, Peri desistiu da faculdade e voltou para casa, para cuidar de perto da saúde materna.
Fez um ano de cursinho e passou em economia em outra faculdade pública -dessa vez, em São Paulo mesmo.
Perto de completar a graduação, ele cogita fazer intercâmbio, mas acha "bem difícil" sair de perto da mãe por um período maior do que dois dias.
Mas diz que é feliz e não se queixa. E há compensações que fazem a abdicação valer a pena: "Ela cuida mais de mim quando está boa. Só é difícil quando a coisa se inverte...".


*Nome trocado a pedido do entrevistado

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