São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2004
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LITERATURA

Conceito de literatura é tema para reflexão

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Conceituar o fenômeno literário é uma questão que se põe não só aos teóricos mas também aos próprios escritores. A reflexão sobre o fazer poético é tema recorrente na história da literatura.
É o que faz, por exemplo, Fernando Pessoa (1888-1935), em seu conhecido poema "Autopsicografia": O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.// E os que lêem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm.// E assim nas calhas de roda/ Gira a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que se chama coração.
Segundo Pessoa, a poesia é o resultado de um fingimento, mas esse fingimento não significa "falta de sinceridade" -afinal, o poeta "finge" a dor que, de fato, sente. O que o poeta nos permite inferir é que o sentimento em estado bruto não é suficiente para produzir a poesia.
A literatura, como forma de representação do mundo, busca reorganizar a realidade. E isso se dá em dois momentos: o primeiro diz respeito aos dados oferecidos ao artista pela vida (a dor real) e o segundo se refere à transformação desse material em linguagem (o "fingimento") de modo a estabelecer uma situação de comunicação com o leitor.
Se Pessoa parece focar o fazer literário no resultado (o texto em si), o escritor Rainer Maria Rilke (1875-1926), por exemplo, vê como essência da literatura o seu caráter de origem. Assim é que, em conhecida carta a seu discípulo Kappus, o qual lhe pedia que avaliasse seus escritos, Rilke lhe diz o seguinte: "O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar -ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vetado escrever?" (...) "Uma obra de arte é boa quando nasce por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu critério -o único existente."
A visão de Rilke privilegia, portanto, a relação da poesia com a vida -ambas, para ele, indissociáveis. As cartas que Rilke e Kappus trocaram entre 1903 e 1908 estão reunidas no volume "Cartas a um Jovem Poeta", belamente traduzido por Cecília Meireles.
A questão continua aberta.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora do livro "Redação Linha a Linha" (Publifolha).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br


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