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LITERATURA
Conceito de literatura é tema para reflexão
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Conceituar o fenômeno literário
é uma questão que se põe não
só aos teóricos mas também aos
próprios escritores. A reflexão sobre o fazer poético é tema recorrente na história da literatura.
É o que faz, por exemplo, Fernando Pessoa (1888-1935), em seu
conhecido poema "Autopsicografia": O poeta é um fingidor./
Finge tão completamente/ Que
chega a fingir que é dor/ A dor que
deveras sente.// E os que lêem o
que escreve,/ Na dor lida sentem
bem,/ Não as duas que ele teve,/
Mas só a que eles não têm.// E assim nas calhas de roda/ Gira a entreter a razão,/ Esse comboio de
corda/ Que se chama coração.
Segundo Pessoa, a poesia é o resultado de um fingimento, mas
esse fingimento não significa "falta de sinceridade" -afinal, o poeta "finge" a dor que, de fato, sente.
O que o poeta nos permite inferir
é que o sentimento em estado
bruto não é suficiente para produzir a poesia.
A literatura, como forma de representação do mundo, busca
reorganizar a realidade. E isso se
dá em dois momentos: o primeiro
diz respeito aos dados oferecidos
ao artista pela vida (a dor real) e o
segundo se refere à transformação desse material em linguagem
(o "fingimento") de modo a estabelecer uma situação de comunicação com o leitor.
Se Pessoa parece focar o fazer literário no resultado (o texto em
si), o escritor Rainer Maria Rilke
(1875-1926), por exemplo, vê como essência da literatura o seu caráter de origem. Assim é que, em
conhecida carta a seu discípulo
Kappus, o qual lhe pedia que avaliasse seus escritos, Rilke lhe diz o
seguinte: "O senhor está olhando
para fora, e é justamente o que
menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar -ninguém. Não
há senão um caminho. Procure
entrar em si mesmo. Investigue o
motivo que o manda escrever;
examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de
sua alma; confesse a si mesmo:
morreria, se lhe fosse vetado escrever?" (...) "Uma obra de arte é
boa quando nasce por necessidade. Nesse caráter de origem está o
seu critério -o único existente."
A visão de Rilke privilegia, portanto, a relação da poesia com a
vida -ambas, para ele, indissociáveis. As cartas que Rilke e Kappus trocaram entre 1903 e 1908 estão reunidas no volume "Cartas a
um Jovem Poeta", belamente traduzido por Cecília Meireles.
A questão continua aberta.
Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora do livro "Redação Linha a Linha"
(Publifolha).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br
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