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VALE A PENA SABER
LITERATURA
Escravidão é tema de Machado
Em ambos os contos,
a compaixão cede ao
egoísmo -e a moral se
ajusta às circunstâncias
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
CONSULTORA DE LÍNGUA PORTUGUESA
A Universidade Federal do
Rio Grande do Sul incluiu em
sua lista de leituras obrigatórias três contos de Machado de
Assis. Dois deles, "Pai contra
Mãe" e "O Caso da Vara", guardam parentesco tanto formal
quanto de conteúdo.
Nesses dois textos, o pano de
fundo é o cotidiano da escravidão, que o autor mostra com a
naturalidade de quem apenas
compõe o cenário de uma história. Usa a ironia na escolha
dos elementos descritivos, jogando para um aparente segundo plano elementos essenciais
ao desenvolvimento do enredo
e, sobretudo, ao seu desfecho.
Em ambas as histórias, Machado critica, sem estardalhaço
ou sentimentalismo, a torpeza
da escravidão. Põe em cena
personagens marcados pela
frouxidão de caráter, cada qual
prestes a sacrificar a ética em
nome de seus interesses -afinal, paira uma atmosfera de
amoralidade, para dizer o mínimo, numa sociedade que não se
envergonha da escravidão.
Em "Pai contra Mãe", a trama é centrada num homem
que, sem inclinação para o trabalho, vivia de capturar escravos fugidos, ofício tão legítimo
quanto a moral vigente à época;
em "O Caso da Vara", o personagem que conduz a linha narrativa é Damião, um seminarista fugitivo que precisa dos favores de uma certa viúva, amiga
de seu padrinho, a única pessoa
que poderia interceder junto a
seu pai para devolver-lhe a liberdade sequestrada pela vida
religiosa, para a qual, por certo,
lhe faltava a vocação.
A obrigação de ir para o seminário para satisfazer a família
também é um dos temas de Machado (aliás, está em "Dom
Casmurro", em que a promessa
de entregar o filho ao seminário
é renegociada e, suprema ironia, Bentinho é trocado por um
escravo, a quem não caberia escolha). Esse é também um
componente da época.
Em ambos os contos, Machado habilmente põe em confronto pessoas que vivem situações
semelhantes, mas que se encontram em posições antagônicas na escala social. Em "Pai
contra Mãe", como resume o
próprio título, um pai e uma
mãe vivem o dilema de desejar
salvar o próprio filho da desgraça. O pai é o caçador de negros
fugidos, que precisa do dinheiro da gratificação para evitar
que seu filho recém-nascido vá
para a roda dos enjeitados; a
mãe é a escrava grávida, a "caça" que será entregue à sanha
de seu proprietário e espancada até abortar o filho.
Em "O Caso da Vara", são
dois jovens, o seminarista Damião e a negra Lucrécia, definida como uma "cria" da casa da
viúva que, sob a batuta da vara
de marmelo, ensinava meninas
como ela a fazer renda de bilro.
A situação da jovem, advertida
por ter achado graça nas pilhérias do rapaz (o rosto já marcado de castigos anteriores), comoveu em silêncio o seminarista, que prometeu a si mesmo
proteger a menina de novas
punições. Cumprir a promessa,
todavia, era arriscar-se a perder o apoio da viúva, imprescindível na matemática dos interesses e da política familiar.
Em ambos os contos, a compaixão cede ao egoísmo -e a
moral se ajusta às circunstâncias. O final feliz de um é a tragédia do outro, como, aliás, a
vida real, diferentemente dos
romances românticos da segunda metade do século 19, nos
lembra todos os dias.
Boa parte dos críticos vê nas
narrativas curtas da segunda
fase do trabalho de Machado
seu momento de auge, quando
atinge a depuração do estilo, o
melhor da fina ironia e da escolha precisa dos termos. As narrativas condensadas parecem
favorecer a estratégia de elaboração do enredo -a imaginação prodigiosa domada pela
perspicácia da razão.
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO é consultora
de língua portuguesa do grupo Folha-UOL.
thais.nicoleti@grupofolha.com.br
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