São Paulo, terça-feira, 12 de janeiro de 2010
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VALE A PENA SABER

LITERATURA

Escravidão é tema de Machado

Em ambos os contos, a compaixão cede ao egoísmo -e a moral se ajusta às circunstâncias

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
CONSULTORA DE LÍNGUA PORTUGUESA

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul incluiu em sua lista de leituras obrigatórias três contos de Machado de Assis. Dois deles, "Pai contra Mãe" e "O Caso da Vara", guardam parentesco tanto formal quanto de conteúdo.
Nesses dois textos, o pano de fundo é o cotidiano da escravidão, que o autor mostra com a naturalidade de quem apenas compõe o cenário de uma história. Usa a ironia na escolha dos elementos descritivos, jogando para um aparente segundo plano elementos essenciais ao desenvolvimento do enredo e, sobretudo, ao seu desfecho.
Em ambas as histórias, Machado critica, sem estardalhaço ou sentimentalismo, a torpeza da escravidão. Põe em cena personagens marcados pela frouxidão de caráter, cada qual prestes a sacrificar a ética em nome de seus interesses -afinal, paira uma atmosfera de amoralidade, para dizer o mínimo, numa sociedade que não se envergonha da escravidão.
Em "Pai contra Mãe", a trama é centrada num homem que, sem inclinação para o trabalho, vivia de capturar escravos fugidos, ofício tão legítimo quanto a moral vigente à época; em "O Caso da Vara", o personagem que conduz a linha narrativa é Damião, um seminarista fugitivo que precisa dos favores de uma certa viúva, amiga de seu padrinho, a única pessoa que poderia interceder junto a seu pai para devolver-lhe a liberdade sequestrada pela vida religiosa, para a qual, por certo, lhe faltava a vocação.
A obrigação de ir para o seminário para satisfazer a família também é um dos temas de Machado (aliás, está em "Dom Casmurro", em que a promessa de entregar o filho ao seminário é renegociada e, suprema ironia, Bentinho é trocado por um escravo, a quem não caberia escolha). Esse é também um componente da época.
Em ambos os contos, Machado habilmente põe em confronto pessoas que vivem situações semelhantes, mas que se encontram em posições antagônicas na escala social. Em "Pai contra Mãe", como resume o próprio título, um pai e uma mãe vivem o dilema de desejar salvar o próprio filho da desgraça. O pai é o caçador de negros fugidos, que precisa do dinheiro da gratificação para evitar que seu filho recém-nascido vá para a roda dos enjeitados; a mãe é a escrava grávida, a "caça" que será entregue à sanha de seu proprietário e espancada até abortar o filho.
Em "O Caso da Vara", são dois jovens, o seminarista Damião e a negra Lucrécia, definida como uma "cria" da casa da viúva que, sob a batuta da vara de marmelo, ensinava meninas como ela a fazer renda de bilro. A situação da jovem, advertida por ter achado graça nas pilhérias do rapaz (o rosto já marcado de castigos anteriores), comoveu em silêncio o seminarista, que prometeu a si mesmo proteger a menina de novas punições. Cumprir a promessa, todavia, era arriscar-se a perder o apoio da viúva, imprescindível na matemática dos interesses e da política familiar.
Em ambos os contos, a compaixão cede ao egoísmo -e a moral se ajusta às circunstâncias. O final feliz de um é a tragédia do outro, como, aliás, a vida real, diferentemente dos romances românticos da segunda metade do século 19, nos lembra todos os dias.
Boa parte dos críticos vê nas narrativas curtas da segunda fase do trabalho de Machado seu momento de auge, quando atinge a depuração do estilo, o melhor da fina ironia e da escolha precisa dos termos. As narrativas condensadas parecem favorecer a estratégia de elaboração do enredo -a imaginação prodigiosa domada pela perspicácia da razão.

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO é consultora de língua portuguesa do grupo Folha-UOL.

thais.nicoleti@grupofolha.com.br



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