São Paulo, quinta-feira, 20 de maio de 2004
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HISTÓRIA

Os projetos de civilização e a barbárie

ROBERSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim se referiu Euclides da Cunha ao destripamento dos sertanejos pelos soldados do Exército na ocasião do cerco ao arraial de Canudos: "Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades".
Até chegar ao interior da Bahia, Euclides considerava que o papel da República era promover os valores da civilização entre os sertanejos, considerados por ele atrasados e ignorantes. Ao presenciar o massacre no sertão, teve de rever suas opiniões e foi um pioneiro ao lançar sólidas desconfianças sobre o discurso "científico" que até então separava o campo da civilização do da barbárie.
No período compreendido entre meados do século 19 e as vésperas da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi o berço de intelectuais e cientistas como Karl Marx, Nietzsche, Sigmund Freud, Thomas Mann, Einstein, Heisemberg e Werner von Braun. Apesar da imensa sofisticação da cultura alemã, foi exatamente na Alemanha que surgiu também o nazismo, um mosaico de idéias que não eram tão novas assim, mas que articulavam de maneira original os rancores decorrentes da derrota na Primeira Guerra Mundial e os interesses da elite alemã.
Essa ideologia criou nos campos de concentração uma linha de produção submetida a rigorosas exigências técnicas -que buscavam a máxima eficiência dos recursos envolvidos para o extermínio em série... de seres humanos.
Em 2003, a administração Bush decidiu invadir o Iraque sob o argumento de libertar o país de uma tirania e criar no Oriente Médio um tipo de regime inspirado nos modelos liberais do Ocidente, que deveria servir de exemplo ao mundo árabe. Recentemente, foram divulgados vídeos e fotos denunciando práticas de tortura e humilhação contra os prisioneiros iraquianos por soldados do Exército "libertador" dos EUA.
Os projetos "civilizatórios" e as nações que os promovem têm demonstrado persistente incapacidade de se manterem fiéis aos valores que professam quando submetidos ao teste das situações-limite. Depois de três séculos de vertiginoso progresso econômico, talvez tenha chegado a hora de o Ocidente reconhecer, de forma inequívoca, que a barbárie não é um inimigo externo, mas está incrustada, ativa e influente, no "coração" da sua própria civilização.


Roberson de Oliveira é professor e autor de "História do Brasil: Análise e Reflexão" e "As Rebeliões Regenciais" (Editora FTD). E-mail: roberson.co@uol.com.br


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