São Paulo, quinta-feira, 25 de julho de 2002
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PORTUGUÊS

Metalinguagem cria distanciamento crítico

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A transformação do ato criador no tema da criação, artifício presente sobretudo na arte moderna -no cinema, no teatro, nas artes plásticas, enfim, em toda manifestação artística que se debruça sobre o próprio fazer-, é o que se chama de metalinguagem.
O recurso foi adotado pela arte moderna, que buscou criar no espectador/leitor uma nova atitude. A arte deixou de ser um espaço de evasão para tornar-se um espaço de tomada de consciência, o que só seria obtido por meio do distanciamento do objeto artístico.
Quando Machado de Assis interpela o leitor -ora para comentar o teor de um capítulo, ora para antecipar-lhe um acontecimento que virá em momento posterior-, está rompendo a linearidade da narrativa e içando o leitor para outro plano. Isso é diferente do que ocorria com os leitores dos romances românticos, que mergulhavam no enredo, não raro sofrendo com os dissabores vividos pelos personagens. Pode-se dizer que Machado antecipa a atitude autocrítica dos modernistas.
A arte do século 20 passa por um autoquestionamento do qual a metalinguagem se torna instrumento. Mas, dado o seu caráter marcadamente lúdico, o exercício metalingüístico permitiu à poesia ganhar em leveza e incorporar de uma vez a língua como tema.
O moderno José Paulo Paes, poeta, ensaísta e tradutor, com sua inteligência precisa e com sua intuição poética certeira, compôs, entre muitos outros, o poemeto "Etimologia": "no suor do rosto/ o gosto/ do nosso pão diário// sal: salário". A aula de origem das palavras dispensa explicações.
Manuel Bandeira, no poema "Neologismo", para fazer uma declaração de amor, ensina que a língua admite a criação de palavras que sejam necessárias: "Beijo pouco, falo menos ainda./ Mas invento palavras/ Que traduzem a ternura mais funda/ E mais cotidiana./ Inventei, por exemplo, o verbo teadorar./ Intransitivo:/ Teadoro, Teodora".
Mas, muito antes do modernismo, já se vê o uso da metalinguagem. Por exemplo, no período barroco, quando os jogos de palavras eram muito apreciados. Prova disso está num soneto da poesia encomiástica de Gregório de Matos, dedicado a um certo conde de Ericeira dom Luís de Meneses, que lhe pedira uma homenagem. O poeta, cuja veia satírica já era conhecida, livrou-se da aborrecida tarefa com sua notória habilidade, compondo um soneto em que apenas discorria sobre o fato de o estar fazendo.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha


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