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FERREIRA GULLAR
Um bicho que se inventa
Toda pessoa necessita que as
demais pessoas a reconheçam tal como ela acredita que é,
tal como se inventa para si mesma. Isto significa que, porque somos uma invenção de nós mesmos, o reconhecimento do outro é
indispensável a que esta invenção
se torne verdadeira. Por isso, se é
certo, como disse Jean-Paul Sartre, que "o inferno são os outros",
é certo também que está neles o
sentido de nossa existência.
Um recém-nascido não é ainda
um cidadão, quase diria que, a rigor, ainda não é gente: trata-se de
um bichinho que traz consigo, potencialmente, todas as qualidades
que o tornarão de fato uma pessoa. Sim, porque uma pessoa,
mais que um ser natural, é um ser
cultural.
Certamente, não pretendo dizer
que a pessoa não seja o seu corpo
material, esse organismo que pulsa, respira e pensa; tanto é que,
sem ele, simplesmente ela não
existiria, e é nele que repousam
todas as qualidades que permitirão o surgimento da pessoa humana que cada recém-nascido se
tornará.
Mas não há nenhum fatalismo
nisso. Se é verdade que o recém-nascido já possui qualidades e
traços próprios que o tornam diferente de todos os outros, não significa que se tornará inevitavelmente o indivíduo X. Não, o que
ele se tornará -e é imprevisível- dependerá em boa parte de
como assimilará os valores que a
educação lhe ofereça. No princípio, o que ele aprende são as normas básicas de sobrevivência e
convívio. Só mais tarde conhecerá
os valores que absorverá de acordo com suas idiossincrasias, face
aos quais reagirá de maneira própria e, assim, irá, passo a passo, se
formando e se inventando como
ser humano.
A sociedade humana foi inventada por nossos antepassados.
Quem nasce hoje já a encontra inventada, material e espiritualmente, com seus equipamentos,
valores e princípios que a constituem e definem. É dentro desta
realidade cultural, complexa e
contraditória, que ele vai se inventar como indivíduo único e inconfundível. Porque cada um de
nós quer ser assim: único e inconfundível.
Viver é, portanto, inventar-se:
inventar sua vida, sua função no
mundo, sua presença. Obviamente, nem todos têm a mesma capacidade de inventar-se e reinventar o mundo. Alguns levam essa
capacidade a ponto de mudar de
maneira radical o universo cultural que encontraram ao nele integrar-se, como o fizeram por
exemplo Isaac Newton ou Albert
Einstein, Sócrates ou Karl Marx,
William Shakespeare ou Wolfgang Goethe, Leonardo da Vinci
ou Pablo Picasso...
Mas a humanidade não é constituída apenas de gênios, que, na
verdade, são exceções. Não obstante, todas as pessoas, em maior
ou menor grau, se inventam e
contribuem para que o mundo
humano se mantenha e se renove.
Aliás, se os gênios contribuem para a reinvenção do universo cultural -que é o nosso espaço de
vida-, a vasta maioria das pessoas é responsável pela preservação do que já foi inventado. Por
isso mesmo, a maioria é conservadora e freqüentemente resiste
às mudanças e inovações. É que
essa maioria não tem noção de
que vive num mundo inventado,
de que a vida é inventada e de
que os valores, que lhe parecem
permanentes, também o são. Eles
não foram ditados por nenhum
ente divino, mas inventados pelos
homens conformes suas necessidades e possibilidades. E também,
conforme elas, podem ser mudados.
O homem é o único animal que
se inventa e inventa o mundo em
que vive. A colméia, que a abelha
fabrica hoje, tem os casulos da
mesma forma hexagonal que tinha desde que surgiram no planeta as primeiras abelhas. Já o
habitat humano vem mudando
desde sempre, da caverna natural
ao casebre, que se transformou
em aldeia, povoado, cidade até
chegar à megalópole de hoje. O
homem, para o bem ou para o
mal, mudou a face do planeta,
utilizou os recursos naturais para
produzir seu mundo tecnológico e
dinâmico. Mudou a natureza, alterou o seu funcionamento biológico, meteorológico, sísmico. Seu
habitat é primordialmente a cidade, esta complexíssima máquina que só funciona graças à tecnologia que inventamos e desenvolvemos incessantemente.
Quando digo que o homem se
inventa, não sugiro que se trata
de mera fantasia sem base na realidade . Newton inventou o cálculo infinitesimal, linguagem das
ciências exatas, que não existia. A
ciência inventou as leis da física,
que sempre atuaram na natureza, mas que eram como se não
existissem no entendimento humano. As invenções da arte são
de outro tipo: Shakespeare inventou a complexidade da alma humana que, se não fosse ele, estaria
como se não existisse. Ou seja, a
partir da natureza ou de sua imaginação, o homem se inventa e
constrói um universo cultural que
é seu verdadeiro espaço de existência.
O homem criou também, além
do mundo material, além da
ciência e da técnica, o mundo
simbólico da filosofia, da música,
da poesia, do teatro, do cinema.
Inventou os valores éticos e estéticos. Inventou a Justiça, embora
sendo injusto. E por que, então, a
inventou? Porque quer ser melhor
do que é, quer -como disse o
poeta Höderlin- "ultrapassar o
campo do possível". Inventou até
Deus, que é a resposta à fatalidade da morte e às perguntas sem
resposta. O homem inventou
Deus para que este o criasse. Filho
dileto de Deus, pode assim aspirar
à ressurreição.
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