|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Nossa servidão voluntária
Os povos ocidentais evitam o contato com o passado, o que qualquer
partido único sonharia
QUEM CONTROLA o passado, dizia George Orwell, controla o
futuro. Os regimes totalitários do século 20, que não ignoravam esse fato, buscaram, com maior
ou menor empenho e sucesso, impor a seus súditos, mais ou menos
acidentais, a versão do passado que
lhes convinha.
Convém, no entanto, ressaltar
que, neste quesito, os totalitarismos
de esquerda se aplicaram mais competentemente. Aos fascistas italianos, afinal, bastou se apropriar de
uma visão pré-existente das glórias
de Roma, adaptando-a aqui e ali, enquanto os nazistas não tiveram o
tempo necessário nem para desenvolver plenamente sua história racial e o kitsch mitológico germânico
nem para impô-los seriamente em
toda a extensão de sua esfera de influência.
Já a União Soviética, durante o
prolongado apogeu do stalinismo,
conseguiu fechar hermeticamente
seus domínios às informações vindas de fora, chegando inclusive ao
refinamento de, com o intuito de
impedir que, ao voltar para casa, eles
contassem aos compatriotas o que
haviam visto no exterior, enviar soldados que haviam derrotado e ocupado outras nações à Sibéria, mantendo-os lá pelo tempo que fosse necessário para que suas memórias se
turvassem ou o frio lhes congelasse
as línguas.
O grosso dos chineses, enquanto
Mao viveu, ignorava o que se passava no resto do mundo, os cambojanos que possuíam óculos (suspeitos,
portanto, de serem leitores) foram
sumariamente executados pelo
Khmer Vermelho, e a Coréia do
Norte continua tão selada que seus
habitantes nem têm como saber se o
país é uma ilha ou se há mais gente
no planeta.
Quanto à versão bananeira desses
paraísos artificiosos, a ilhota latino-americana que, segundo uma piada
antiga, tinha a capital em Moscou, a
nata produtiva da população na Flórida e o cemitério em Angola (quando não na Bolívia), o que a torna
meio diferente é que, com seu tiranete barbudo, uniformizado e coberto de medalhas (quem sabe para
se solidarizar com certos sargentos
africanos que se promoveram a generais ou marechais-de-campo e
presidentes vitalícios), mas incapaz
de excluir o restante sortudo da humanidade por precisar desesperadamente do dinheiro de verdade
que, trazido por turistas, destina-se
a alimentar policiais políticos e torturadores, os cubanos não ignoram
nem quão melhor é a vida a cento e
pouco quilômetros de distância,
nem tampouco o que pode lhes
acontecer de desagradável caso o comentem com os 50% ou 60% de
compatriotas que fazem bico às vezes como dedos-duros.
Viver numa democracia e, por isso, dispor de acesso independente e
desobstruído ao conhecimento histórico seria, em princípio, uma pré-condição fundamental do livre-pensar e da autonomia individual.
Se algum dia foi assim, talvez não
seja mais ou, na melhor das hipóteses, estamos bem encaminhados rumo a algo muito pior que seu desconhecimento caótico, a saber, uma
espécie de viés que, combinando o
anacronismo com a correção política, vem sendo, sob a forma de um clima de opinião, voluntariamente
adotado por mais e mais gente.
É desalentador ver a maioria, começando, como sempre, pela intelectualidade, se auto-impor leituras
tão estapafúrdias, tão grotescas e
míopes, se não de cada fato isolado,
seguramente dos contextos nos
quais esses adquirem sentido, que
discutir hoje em dia eventos recentes como a Segunda Guerra, a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, o conflito árabe-israelense no Oriente Médio ou o duplo golpe de Estado chileno (o de esquerda e o de direita) acaba se transformando numa tarefa
hercúlea, impossível e, para todos os
efeitos, inútil.
Os escravos do bloco soviético
eram, nisso, melhores do que os filhotes mimados de nossa civilização
tão moribunda quanto o ditador do
Gulag caribenho acima, pois, uma
vez demitida a indesejada utopia deles pela pujança econômica e militar
americana, eles, antes de se entregar, dois ou três anos depois, às delícias da alta pornografia e do baixo
misticismo, ainda tentaram se recuperar e recuperar o tempo perdido,
lendo a sério e famintos tudo que
seus capatazes estatais lhes haviam
antes vetado ou omitido.
Os ocidentais contemporâneos,
porém, evitando meticulosamente
conhecer e entender um passado
que lhes diz respeito, são os servos
voluntários com os quais, numa noite de verão, qualquer partido único
sonharia.
Texto Anterior: Cinema: "Os Infiltrados" leva prêmio da crítica nos EUA Próximo Texto: Crítica/música: Damien Rice volta preguiçoso Índice
|