São Paulo, segunda-feira, 01 de janeiro de 2007

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NELSON ASCHER

Nossa servidão voluntária

Os povos ocidentais evitam o contato com o passado, o que qualquer partido único sonharia

QUEM CONTROLA o passado, dizia George Orwell, controla o futuro. Os regimes totalitários do século 20, que não ignoravam esse fato, buscaram, com maior ou menor empenho e sucesso, impor a seus súditos, mais ou menos acidentais, a versão do passado que lhes convinha.
Convém, no entanto, ressaltar que, neste quesito, os totalitarismos de esquerda se aplicaram mais competentemente. Aos fascistas italianos, afinal, bastou se apropriar de uma visão pré-existente das glórias de Roma, adaptando-a aqui e ali, enquanto os nazistas não tiveram o tempo necessário nem para desenvolver plenamente sua história racial e o kitsch mitológico germânico nem para impô-los seriamente em toda a extensão de sua esfera de influência.
Já a União Soviética, durante o prolongado apogeu do stalinismo, conseguiu fechar hermeticamente seus domínios às informações vindas de fora, chegando inclusive ao refinamento de, com o intuito de impedir que, ao voltar para casa, eles contassem aos compatriotas o que haviam visto no exterior, enviar soldados que haviam derrotado e ocupado outras nações à Sibéria, mantendo-os lá pelo tempo que fosse necessário para que suas memórias se turvassem ou o frio lhes congelasse as línguas.
O grosso dos chineses, enquanto Mao viveu, ignorava o que se passava no resto do mundo, os cambojanos que possuíam óculos (suspeitos, portanto, de serem leitores) foram sumariamente executados pelo Khmer Vermelho, e a Coréia do Norte continua tão selada que seus habitantes nem têm como saber se o país é uma ilha ou se há mais gente no planeta.
Quanto à versão bananeira desses paraísos artificiosos, a ilhota latino-americana que, segundo uma piada antiga, tinha a capital em Moscou, a nata produtiva da população na Flórida e o cemitério em Angola (quando não na Bolívia), o que a torna meio diferente é que, com seu tiranete barbudo, uniformizado e coberto de medalhas (quem sabe para se solidarizar com certos sargentos africanos que se promoveram a generais ou marechais-de-campo e presidentes vitalícios), mas incapaz de excluir o restante sortudo da humanidade por precisar desesperadamente do dinheiro de verdade que, trazido por turistas, destina-se a alimentar policiais políticos e torturadores, os cubanos não ignoram nem quão melhor é a vida a cento e pouco quilômetros de distância, nem tampouco o que pode lhes acontecer de desagradável caso o comentem com os 50% ou 60% de compatriotas que fazem bico às vezes como dedos-duros.
Viver numa democracia e, por isso, dispor de acesso independente e desobstruído ao conhecimento histórico seria, em princípio, uma pré-condição fundamental do livre-pensar e da autonomia individual.
Se algum dia foi assim, talvez não seja mais ou, na melhor das hipóteses, estamos bem encaminhados rumo a algo muito pior que seu desconhecimento caótico, a saber, uma espécie de viés que, combinando o anacronismo com a correção política, vem sendo, sob a forma de um clima de opinião, voluntariamente adotado por mais e mais gente.
É desalentador ver a maioria, começando, como sempre, pela intelectualidade, se auto-impor leituras tão estapafúrdias, tão grotescas e míopes, se não de cada fato isolado, seguramente dos contextos nos quais esses adquirem sentido, que discutir hoje em dia eventos recentes como a Segunda Guerra, a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, o conflito árabe-israelense no Oriente Médio ou o duplo golpe de Estado chileno (o de esquerda e o de direita) acaba se transformando numa tarefa hercúlea, impossível e, para todos os efeitos, inútil.
Os escravos do bloco soviético eram, nisso, melhores do que os filhotes mimados de nossa civilização tão moribunda quanto o ditador do Gulag caribenho acima, pois, uma vez demitida a indesejada utopia deles pela pujança econômica e militar americana, eles, antes de se entregar, dois ou três anos depois, às delícias da alta pornografia e do baixo misticismo, ainda tentaram se recuperar e recuperar o tempo perdido, lendo a sério e famintos tudo que seus capatazes estatais lhes haviam antes vetado ou omitido.
Os ocidentais contemporâneos, porém, evitando meticulosamente conhecer e entender um passado que lhes diz respeito, são os servos voluntários com os quais, numa noite de verão, qualquer partido único sonharia.


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