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ARNALDO JABOR
A ilha de "Caras" é a ilha da utopia possível
Acordei de manhã e me vi transformado em alguém que não era
mais eu. Olhava espantado para
meu novo braço musculoso com a
tatuagem que parecia uma marca
registrada - "AJ - Made in Brazil"; ao lado, havia um código de
barras. Corri para o espelho e dei
um grito. Eu estava ali, mas era
diferente. Meu rosto era mais jovem, como se tivessem me transformado num duplo de mim mesmo. Havia em meu rosto uma alegria horrenda, que me dava um
ar de andróide. Saí correndo do
quarto. Esbarrei numa grande
cascata de camarões que parecia
um obelisco rosado. Um grupo de
maculelê batia espadas de pau ao
som do pagode, capoeiristas rodavam, uma baiana distribuía acarajés dourados para uma multidão de mulheres de seios enormes
como airbags e bundas lipoaspiradas, todas com o mesmo sorriso
eufórico, gelado, que eu vira esculpido em minha boca. Onde estava
eu? Não tive tempo de descobrir,
pois fui agarrado por trás por um
corpo macio, quente, de uma mulher que me mordeu levemente a
orelha, enquanto surgia um microfone e uma câmera com alguém que perguntava: "Vocês estão namorando?". A mulher se
adiantou e, então, pude vê-la:
uma gata perfeita, dourada, uma
espécie de "Feiticeira" com o sorriso de mil dentes, respondendo
ao repórter:
"Somos apenas bons amigos,
nos conhecemos na festa da
Phytoervas, em homenagem às
sandálias Melissa, e passamos a
curtir juntos o verão Cebion, não
é, Arnaldo?".
"Claro", respondi. "E tudo isso
graças aos produtos Grendene
que nos patrocinaram, graças
também ao plano de viagens
Vasp, que leva felicidade e amor a
todo o Brasil" -ecoei, percebendo, em pânico, que minha voz
saía digital, sem comando.
"Agora... Vamos ao jet ski, amore mio!", gritou a moça me puxando pela mão. "Sim", berrei, "e
jet ski, só Kawasaki, os preferidos
por Collor!". Em um segundo eu
cavalgava o jet ski, com a mulher
agarrada em mim, sorrindo sempre. Só que, estranhamente, ela
não falava mais comigo. Quando
o jet ski embicou na areia, puxaram-me para um grupo de forró,
dançado por dezenas de socialites:
Lair Macambira (31), Kristel Cibele (17), Becki Carvalho (82),
Jandira Aranha (49...sic), Edilene
Camarão (21) -a rainha das empadas-, Gerson Camarão (71)
-o rei delas-, Lilibeth Cardoso,
emergente dona do Limpa Fossas
da Barra, e até a ex-princesa Carol Scarpa de Orleans e Bragança,
agora namorando o segurança
"Cadelão". Os colunáveis rebolavam em cima de garrafas, enquanto eu, em minha persistente
luta contra a alegria, via uma
sombra de tristeza nos crioulos
sem dentes que tocavam os instrumentos. Baixou-me uma angústia
terrível, enquanto, fingindo dançar, pensava nos excluídos das periferias. Minha namorada (qual
seu nome?) ex-paquita, ex-piranha, ex-Justus, ex-Otávio Mesquita, ex-Szafir, segredou-me uma
ordem feroz: "Sorria! Tristeza não
é "comercial'!". Para disfarçar, me
joguei para a mesa de comidas, já
assaltada por "Gordo" Barregão e
Rafael Grecca, onde comi como
um cavalo arrivista e bebi como
um desertor do AA. Empapuçado,
depois de sete caipirinhas de kiwi,
sob o gentil apoio de Orloff, alcancei um pouco de "luxo, calma e
volúpia" (lembrei-me de Matisse...), e fiquei deitado no colchão
flutuante "Sukita", na piscina
amebóide, vendo a Tiazinha com
sua mãe que, em lágrimas, declarava ao repórter: "Sempre quis vir
a ilha de "Caras"... Agora posso
morrer feliz!".
Eu ouvia a música de Zezé di
Camargo, que dava uma canja,
enquanto uns políticos gordos
brincavam de passar a mão na
bunda uns dos outros, enquanto
eu via as modelos comendo fios
d'ovos e o bebê de Mick Jagger vestido de Mickey mamando na mãe
"topless". A ilha parecia flutuar
no espaço, mas uma nuvem de
angústia ainda me cobria. Da
água, um severo organizador me
rosnou: "Ria, gargalhe! Você está
aqui para isso!". Foi quando mudou a música. As senhoras que esfregavam a bunda nas garrafas
passaram a pular numa deliciosa
"tarantela". Um esfuziante grupo
de emergentes louras com cachorrinhos no colo fazia uma espécie
de "karaokê de au-aus", todos latindo ao som da tarantela, o que
fez meu corpo balançar ao som da
música irresistível. Senti uma
mordida na nuca, e um flash. Minha namorada falou: "Mais alegre, hein? Vamos dançar sob o patrocínio das massas "Angélica'?".
O flash espoucou de novo e, não
sei porquê, fui tomado de uma súbita euforia. "Sim!!!", berrei. "Nenhum homem é uma ilha!". E arrasei. Pulamos até o sol cair, em
meio àquela nuvem de emergentes, lulus, "au-aus", axés, bundas,
cangas, bofes, piranhas. E comecei
a sentir uma indescritível felicidade.
"Sim... Sim... Por que não?"
Abaixo meu criticismo melancólico, viva o pagode, e eu gritava:
"Rebola agachadinha, vai na garrafinha vai!". Minha namorada
parecia mais apaixonada por
mim (qual seu nome?), e a Tiazinha dançava, e os seguranças-gigolôs dançavam, e eu berrava:
"Viva o Brasil 2000! Viva a utopia
possível!!!". Tudo começou a rodar e eu quis amar e dormir. Chamei minha mulher-axé: "Pra cama!". Duas bichas decoradoras
me disputaram: "Ele vai dormir
na suíte que eu decorei, toda verde-e-amarela para comemorar os
500 anos!". A outra: "Nada disso!
Vai pro meu bangalô decorado
como um barraco de favela, madeira e barro, com frigobar, claro...".
Arrastei minha "metaFeiticeira" para a cama e, apesar de me
sentir filmado, vigiado, tivemos
um belo orgasmo, mas que parecia falso e digital.
Minha mulher-axé sorriu: "Puxa, como é bom amar em colchões
Dreamland, importados pela
King Beds" . Dito isso, ela virou
para o lado e silenciou. Então
pensei: "Como a mãe de Tiazinha,
também realizei meu sonho. A
ilha de Caras é a ilha da utopia
possível!". Eu era feliz. Apertei minha tatuagem com o código de
barras e deletei-me. Dormi, com o
sorriso aberto e fixo para sempre
em minha boca.
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