São Paulo, Terça-feira, 01 de Fevereiro de 2000


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ARNALDO JABOR
A ilha de "Caras" é a ilha da utopia possível

Acordei de manhã e me vi transformado em alguém que não era mais eu. Olhava espantado para meu novo braço musculoso com a tatuagem que parecia uma marca registrada - "AJ - Made in Brazil"; ao lado, havia um código de barras. Corri para o espelho e dei um grito. Eu estava ali, mas era diferente. Meu rosto era mais jovem, como se tivessem me transformado num duplo de mim mesmo. Havia em meu rosto uma alegria horrenda, que me dava um ar de andróide. Saí correndo do quarto. Esbarrei numa grande cascata de camarões que parecia um obelisco rosado. Um grupo de maculelê batia espadas de pau ao som do pagode, capoeiristas rodavam, uma baiana distribuía acarajés dourados para uma multidão de mulheres de seios enormes como airbags e bundas lipoaspiradas, todas com o mesmo sorriso eufórico, gelado, que eu vira esculpido em minha boca. Onde estava eu? Não tive tempo de descobrir, pois fui agarrado por trás por um corpo macio, quente, de uma mulher que me mordeu levemente a orelha, enquanto surgia um microfone e uma câmera com alguém que perguntava: "Vocês estão namorando?". A mulher se adiantou e, então, pude vê-la: uma gata perfeita, dourada, uma espécie de "Feiticeira" com o sorriso de mil dentes, respondendo ao repórter:
"Somos apenas bons amigos, nos conhecemos na festa da Phytoervas, em homenagem às sandálias Melissa, e passamos a curtir juntos o verão Cebion, não é, Arnaldo?".
"Claro", respondi. "E tudo isso graças aos produtos Grendene que nos patrocinaram, graças também ao plano de viagens Vasp, que leva felicidade e amor a todo o Brasil" -ecoei, percebendo, em pânico, que minha voz saía digital, sem comando.
"Agora... Vamos ao jet ski, amore mio!", gritou a moça me puxando pela mão. "Sim", berrei, "e jet ski, só Kawasaki, os preferidos por Collor!". Em um segundo eu cavalgava o jet ski, com a mulher agarrada em mim, sorrindo sempre. Só que, estranhamente, ela não falava mais comigo. Quando o jet ski embicou na areia, puxaram-me para um grupo de forró, dançado por dezenas de socialites: Lair Macambira (31), Kristel Cibele (17), Becki Carvalho (82), Jandira Aranha (49...sic), Edilene Camarão (21) -a rainha das empadas-, Gerson Camarão (71) -o rei delas-, Lilibeth Cardoso, emergente dona do Limpa Fossas da Barra, e até a ex-princesa Carol Scarpa de Orleans e Bragança, agora namorando o segurança "Cadelão". Os colunáveis rebolavam em cima de garrafas, enquanto eu, em minha persistente luta contra a alegria, via uma sombra de tristeza nos crioulos sem dentes que tocavam os instrumentos. Baixou-me uma angústia terrível, enquanto, fingindo dançar, pensava nos excluídos das periferias. Minha namorada (qual seu nome?) ex-paquita, ex-piranha, ex-Justus, ex-Otávio Mesquita, ex-Szafir, segredou-me uma ordem feroz: "Sorria! Tristeza não é "comercial'!". Para disfarçar, me joguei para a mesa de comidas, já assaltada por "Gordo" Barregão e Rafael Grecca, onde comi como um cavalo arrivista e bebi como um desertor do AA. Empapuçado, depois de sete caipirinhas de kiwi, sob o gentil apoio de Orloff, alcancei um pouco de "luxo, calma e volúpia" (lembrei-me de Matisse...), e fiquei deitado no colchão flutuante "Sukita", na piscina amebóide, vendo a Tiazinha com sua mãe que, em lágrimas, declarava ao repórter: "Sempre quis vir a ilha de "Caras"... Agora posso morrer feliz!".
Eu ouvia a música de Zezé di Camargo, que dava uma canja, enquanto uns políticos gordos brincavam de passar a mão na bunda uns dos outros, enquanto eu via as modelos comendo fios d'ovos e o bebê de Mick Jagger vestido de Mickey mamando na mãe "topless". A ilha parecia flutuar no espaço, mas uma nuvem de angústia ainda me cobria. Da água, um severo organizador me rosnou: "Ria, gargalhe! Você está aqui para isso!". Foi quando mudou a música. As senhoras que esfregavam a bunda nas garrafas passaram a pular numa deliciosa "tarantela". Um esfuziante grupo de emergentes louras com cachorrinhos no colo fazia uma espécie de "karaokê de au-aus", todos latindo ao som da tarantela, o que fez meu corpo balançar ao som da música irresistível. Senti uma mordida na nuca, e um flash. Minha namorada falou: "Mais alegre, hein? Vamos dançar sob o patrocínio das massas "Angélica'?". O flash espoucou de novo e, não sei porquê, fui tomado de uma súbita euforia. "Sim!!!", berrei. "Nenhum homem é uma ilha!". E arrasei. Pulamos até o sol cair, em meio àquela nuvem de emergentes, lulus, "au-aus", axés, bundas, cangas, bofes, piranhas. E comecei a sentir uma indescritível felicidade.
"Sim... Sim... Por que não?"
Abaixo meu criticismo melancólico, viva o pagode, e eu gritava: "Rebola agachadinha, vai na garrafinha vai!". Minha namorada parecia mais apaixonada por mim (qual seu nome?), e a Tiazinha dançava, e os seguranças-gigolôs dançavam, e eu berrava: "Viva o Brasil 2000! Viva a utopia possível!!!". Tudo começou a rodar e eu quis amar e dormir. Chamei minha mulher-axé: "Pra cama!". Duas bichas decoradoras me disputaram: "Ele vai dormir na suíte que eu decorei, toda verde-e-amarela para comemorar os 500 anos!". A outra: "Nada disso! Vai pro meu bangalô decorado como um barraco de favela, madeira e barro, com frigobar, claro...".
Arrastei minha "metaFeiticeira" para a cama e, apesar de me sentir filmado, vigiado, tivemos um belo orgasmo, mas que parecia falso e digital.
Minha mulher-axé sorriu: "Puxa, como é bom amar em colchões Dreamland, importados pela King Beds" . Dito isso, ela virou para o lado e silenciou. Então pensei: "Como a mãe de Tiazinha, também realizei meu sonho. A ilha de Caras é a ilha da utopia possível!". Eu era feliz. Apertei minha tatuagem com o código de barras e deletei-me. Dormi, com o sorriso aberto e fixo para sempre em minha boca.


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