São Paulo, terça-feira, 01 de fevereiro de 2005

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Show de Elton Medeiros, hoje no Rio, dá início às homenagens ao centenário de Ismael Silva

Deixa falar

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Elton Medeiros lembra-se de, em 1950, ter ouvido na rádio Tupi a (anunciada, pelo menos) primeira execução de "Antonico", na voz de Alcides Gerardi. Era a volta do compositor Ismael Silva ao sucesso depois de anos de prisão e ostracismo.
Entre 1963 e 1965, Silva era um dos astros do Zicartola, o histórico restaurante e casa de samba que Cartola e sua mulher abriram no centro do Rio. Medeiros conviveu ali com ele, que renascia mais uma vez das cinzas.
Em 1973, após outro período na sombra, Silva ganhou a chance de gravar um disco, que seria seu último. Batizado com o título de seu maior sucesso, "Se Você Jurar", ele foi relançado em CD em dezembro passado.
Hoje, Medeiros sobe ao palco do Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio para, ao lado de Claudio Nucci, cantar grandes sambas como "Antonico" e "Ao Romper da Aurora" e iniciar a série "Ismael Silva: Deixa Falar", comemoração dos cem anos -que se completam em 14 de setembro- de um dos protagonistas da história do samba.
"Ele era o mais mal-humorado compositor bem-humorado que eu conheci. Seus sambas eram engraçados, mas ele era muito fechado. Eu, que tinha 25 anos a menos, via Ismael como um ídolo. Sempre soube da sua importância para a cultura popular brasileira", conta Medeiros, 74.
Essa importância de Ismael Silva (1905-1978) começou a se construir na segunda metade dos anos 20. Ele, que nascera em Niterói, estava entre os negros pobres do bairro do Estácio (zona central do Rio) que criaram o "samba urbano", com a batida que conhecemos hoje, não aquele com jeito de maxixe que se tocava anteriormente e que tinha Sinhô como maior expoente.
Essa turma do Estácio fundou, em 12 de agosto de 1928, o Deixa Falar, um bloco que se tornou embrião de todas as escolas de samba por causa de algumas inovações: a música voltada para os foliões evoluírem, e não bailarem, como no maxixe; o surdo, instrumento inventado no bairro por Alcebíades Barcelos, o Bide, marcando a cadência; a ala das baianas; e o mestre-sala e a porta-bandeira, baseados no baliza e na porta-estandarte dos ranchos carnavalescos.
Ismael Silva também foi, entre 1928 e 1934, o mais bem-sucedido "sambista de morro" . Mais do que de Cartola e Bide, eram dele os sambas que estouravam nas rádios nas vozes de Mário Reis e, principalmente, Francisco Alves.
Foi Chico Alves e seu tino comercial que descobriram nos morros, em especial os do Estácio, uma fonte inesgotável de músicas de qualidade. Maior nome do rádio de então, Alves garantia o sucesso da gravação em troca de ser parceiro do verdadeiro autor do samba -às vezes, ele comprava toda a autoria.
A prática valeu ao cantor a alcunha de "comprositor", dada pelas línguas ferinas do café Nice (reduto de músicos no centro do Rio) àqueles que tiravam um naco dos direitos autorais alheios.
Mas Silva sempre se disse grato a Alves por tê-lo projetado. Sambas como "Me Faz Carinhos", "Não Há", "Nem É Bom Falar", "Arrependido", "Adeus" e, sobretudo, "Se Você Jurar" fizeram sucesso e firmaram o estilo do compositor (em parceria com Nílton Bastos e, depois da morte deste, Noel Rosa, com quem compôs 18 músicas).
"Um tema recorrente nos sambas é a falsidade da mulher, a impossibilidade de um relacionamento ser leal. Há momentos em que ele trata do amor com mau humor, e há crônicas muito bem-humoradas", avalia o músico Luís Filipe de Lima, diretor da série "Ismael Silva: Deixa Falar".
Músicas como "Todo Mundo Quer" ("Trabalho igual ao meu todo mundo quer/ Mas nem todos podem arranjar/ Pego às onze horas, largo ao meio-dia/ E tenho uma hora pra almoçar") e "Peçam Bis" ("Foi tanto bis que eu já não podia atender/ Entretanto o que a platéia queria/ É que eu cantasse, cantasse até aprender") mostram que o humor de Ismael Silva ia além do amor.
Mas quem conviveu com ele se lembra de um homem fechado, até amargurado, que evitava tocar em assuntos como a condenação a cinco anos, em 1935, por ter dado dois tiros nas nádegas de um malandro que se engraçara com sua irmã.
Tendo passado boa parte da vida sozinho em quartos de pensão, Silva foi perdendo com o tempo seus contemporâneos. Dos "bambas do Estácio", só Bide (1902-1975) sobreviveu tanto quanto ele.
Rubem Barcelos, irmão de Bide, e Edgar Marcelino dos Passos, conhecidos como Mano Rubem e Mano Edgar -que, para Medeiros, iniciaram a invenção do "samba urbano" antes de Ismael Silva-, o parceiro Nílton Bastos, os valentões Baiaco e Brancura, todos morreram jovens, doentes ou assassinados.
"Ele foi ficando sozinho. E, ao contrário do Cartola, não sabia se relacionar com os mais jovens", diz Medeiros.
Hoje com 55 anos, o violonista Cláudio Jorge acompanhou o compositor em shows nos seus três últimos anos de vida. Não podia subir ao quarto dele -a vaidade de Silva não permitia-, mas o encontrava sempre de terno num bar próximo, na Lapa (zona central). "Ele era muito reservado e, também, orgulhoso. Tinha uma postura elegante, uma altivez, e sua inteligência era acima da média. Suas melodias e letras eram muito refinadas", diz o músico.
Essa vaidade de Silva também é ressaltada por Medeiros e todos os que conheceram o compositor. Revelava-se nas roupas e na maneira de falar de si próprio e de seu papel na história da música brasileira -uma de suas grandes mágoas no fim da vida foi ter sido barrado ao tentar entrar no desfile das escolas de samba.
Cláudio Jorge, ao lado de Mônica Salmaso, encerrará a série do CCBB em 1º/3. Antes, cantarão Fátima Guedes e Flávio Bauraqui -ator que interpreta Silva no filme sobre Noel Rosa que está sendo produzido- em 15/2, no bloco "Amor de Malandro"; e Monarco, Teresa Cristina e Pedro Miranda em 22/2, em "Os Bambas do Estácio".
Na abertura de hoje, Medeiros cantará um samba inédito de Ismael Silva, "Não Avance o Sinal", enviado a ele pelo letrista Paulo César Pinheiro. A obra de Ismael Silva continua saindo da sombra e se renovando.


ISMAEL SILVA: DEIXA FALAR. Quando: de hoje a 1º/3 (terças, às 12h30 e 18h30). Onde: Centro Cultural Banco do Brasil do Rio (r. Primeiro de Março, 66, centro, tel. 0/xx/21/3808-2020). Quanto: R$ 3 e R$ 6.

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