São Paulo, sexta-feira, 01 de fevereiro de 2008

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Música - Crítica/"My Foolish Heart (Live at Montreux)"

Jarrett "implode" o jazz em CD

Na companhia de Gary Peacock e Jack deJohnette, virtuose do piano relê criações de Monk e outros

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Em seu tom mais tipicamente ranzinza, Keith Jarrett relembra, no encarte de "My Foolish Heart", os problemas de som, luz e calor e a frieza inicial da platéia, durante um concerto no Festival de Montreux, em julho de 2001, com seus parceiros de um quarto de século, o baixista Gary Peacock e o baterista Jack deJohnette. O trio tocava "muito melhor do que de hábito" nessas circunstâncias, mas a platéia seguia distante, depois de 45 minutos. Até que Jarrett, de surpresa, atacou em ritmo de ragtime um clássico de Fats Waller, "Ain't Misbehavin'".
"Ain't misbehavin'/ I'm savin" my love for you" (Não estou aprontando/ Estou guardando meu amor pra você), diz a letra da canção de 1929, que, no contexto, ganha outro sentido. Dali em diante, platéia alguma resistiria às paixões de Jarrett e companheiros, tão bem gravadas nesse disco. A começar pela improvável seqüência de três ragtimes -além desse, eles tocam outro Fats Waller, "Honeysucke Rose", e uma balada de Lorenz Hart e Richard Rogers, "You Took Advantage of Me"-, a "primeira e única vez" que tocaram ao vivo versões ragtime de canções de jazz. E a continuar por uma antológica recriação de "Straight, No Chaser", de Thelonious Monk.
Tudo o que em Monk é aberratório -as harmonias cromáticas (no caso, a repetida oscilação entre segunda inversão de tônica e a dominante com quinta aumentada), as melodias cortadas (pedaços de melodia, que voltam sempre ao começo e avançam aos trancos e barrancos), as escalas que se sucedem numa lógica própria- será explodido ou implodido nessa versão de mais de dez minutos, que rompe, em muitos pontos, certa inominada fronteira entre a vanguarda do jazz e a vanguarda da música de concerto.
Nas mãos de Jarrett, em particular, a música de T. Sphere Monk (1917-82) conversa com a de compositores de outras esferas, como G. Ligeti (1923-2006) e L. Berio (1925-2003).
Um ano depois de Montreux, Jarrett faria uma excursão solo pelo Japão. E em 2005 lançaria um CD duplo, "Radiance" (ECM), com a gravação de um concerto em Tóquio, também disponível em DVD. O cruzamento de registros chega a um máximo de invenção ali: cada faixa parece composta em outro gênero, passando do mais tonalmente livre ao mais simples e à vontade. Em 2006, sairia outro CD solo duplo, ainda mais impressionante, "The Carnegie Hall Concert" (ECM).
O que ele faz nesses discos reinventa sua própria arte do piano. Nesse estágio de maestria, ele pode acolher influências sem perder por um segundo a particularidade. Tudo vira Keith Jarrett.
Para além disso, ninguém como Keith Jarrett tem o toque de Keith Jarrett; e talvez ninguém seja capaz, como ele, de tocar, num momento, uma melodia reduzida à essência, sem quase nada ao redor (como fez nas 11 canções de "The Melody at Night, with You", de 1999) e, noutro instante, a mesma melodia multiplicada em mil arabescos, fantasticamente desenovelados de acordo com uma lei da renovação espontânea.
No concerto de Montreux, prodígios assim se realizam em outras bases, camerísticas. Mas, em retrospecto, os solos futuros se deixam escutar nos solos e duos e trios do passado.
É assim, por exemplo, que se pode ouvir a independência de timbres entre a mão direita fazendo a melodia de baladas lentas como "My Foolish Heart" (Washington/Young) e "Guess I'll Hang My Tears Out to Dry" (Styne/ Cahn), e a esquerda sustentando acordes noutro plano, como se fosse uma orquestra de cordas num adágio.
Ou as mirabolantes curvas e ângulos percorridos em alta velocidade em "Four" (Miles Davis) e "Oleo" (Sonny Rollins). Na conclusão do texto do encarte, o pianista não deixa dúvidas sobre a intensidade da aventura. Agradece aos parceiros por compartilharem a "batalha pela sobrevivência artística", num mundo "de falsidade, leviandade, imitação, acanhamento, apatia, inconsciência, preguiça, exibição, ignorância e auto-engano". Contra tal diagnóstico, até a música parece pouco remédio. Coisa de um foolish heart, um "coração ingênuo": como o dele, como os deles, como o nosso.


MY FOOLISH HEART (LIVE AT MONTREUX)
Artista:
Keith Jarrett, Gary Peacock e Jack DeJohnette
Gravadora: ECM (importado)
Quanto: R$ 41 mais taxas em www.amazon.com
Avaliação: ótimo


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