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Música - Crítica/"My Foolish Heart (Live at Montreux)"
Jarrett "implode" o jazz em CD
Na companhia de Gary Peacock e Jack deJohnette, virtuose do piano relê criações de Monk e outros
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Em seu tom mais tipicamente ranzinza, Keith
Jarrett relembra, no
encarte de "My Foolish Heart",
os problemas de som, luz e calor e a frieza inicial da platéia,
durante um concerto no Festival de Montreux, em julho de
2001, com seus parceiros de um
quarto de século, o baixista
Gary Peacock e o baterista Jack
deJohnette. O trio tocava "muito melhor do que de hábito"
nessas circunstâncias, mas a
platéia seguia distante, depois
de 45 minutos. Até que Jarrett,
de surpresa, atacou em ritmo
de ragtime um clássico de Fats
Waller, "Ain't Misbehavin'".
"Ain't misbehavin'/ I'm savin" my love for you" (Não estou aprontando/ Estou guardando meu amor pra você), diz
a letra da canção de 1929, que,
no contexto, ganha outro sentido. Dali em diante, platéia alguma resistiria às paixões de Jarrett e companheiros, tão bem
gravadas nesse disco.
A começar pela improvável
seqüência de três ragtimes
-além desse, eles tocam outro
Fats Waller, "Honeysucke Rose", e uma balada de Lorenz
Hart e Richard Rogers, "You
Took Advantage of Me"-, a
"primeira e única vez" que tocaram ao vivo versões ragtime
de canções de jazz. E a continuar por uma antológica recriação de "Straight, No Chaser", de Thelonious Monk.
Tudo o que em Monk é aberratório -as harmonias cromáticas (no caso, a repetida oscilação entre segunda inversão de
tônica e a dominante com quinta aumentada), as melodias
cortadas (pedaços de melodia,
que voltam sempre ao começo
e avançam aos trancos e barrancos), as escalas que se sucedem numa lógica própria- será
explodido ou implodido nessa
versão de mais de dez minutos,
que rompe, em muitos pontos,
certa inominada fronteira entre a vanguarda do jazz e a vanguarda da música de concerto.
Nas mãos de Jarrett, em particular, a música de T. Sphere
Monk (1917-82) conversa com
a de compositores de outras esferas, como G. Ligeti (1923-2006) e L. Berio (1925-2003).
Um ano depois de Montreux,
Jarrett faria uma excursão solo
pelo Japão. E em 2005 lançaria
um CD duplo, "Radiance"
(ECM), com a gravação de um
concerto em Tóquio, também
disponível em DVD. O cruzamento de registros chega a um
máximo de invenção ali: cada
faixa parece composta em outro gênero, passando do mais
tonalmente livre ao mais simples e à vontade. Em 2006, sairia outro CD solo duplo, ainda
mais impressionante, "The
Carnegie Hall Concert" (ECM).
O que ele faz nesses discos
reinventa sua própria arte do
piano. Nesse estágio de maestria, ele pode acolher influências sem perder por um segundo a particularidade. Tudo vira
Keith Jarrett.
Para além disso, ninguém como Keith Jarrett tem o toque
de Keith Jarrett; e talvez ninguém seja capaz, como ele, de
tocar, num momento, uma melodia reduzida à essência, sem
quase nada ao redor (como fez
nas 11 canções de "The Melody
at Night, with You", de 1999) e,
noutro instante, a mesma melodia multiplicada em mil arabescos, fantasticamente desenovelados de acordo com uma
lei da renovação espontânea.
No concerto de Montreux,
prodígios assim se realizam em
outras bases, camerísticas.
Mas, em retrospecto, os solos
futuros se deixam escutar nos
solos e duos e trios do passado.
É assim, por exemplo, que se
pode ouvir a independência de
timbres entre a mão direita fazendo a melodia de baladas lentas como "My Foolish Heart"
(Washington/Young) e "Guess
I'll Hang My Tears Out to Dry"
(Styne/ Cahn), e a esquerda
sustentando acordes noutro
plano, como se fosse uma orquestra de cordas num adágio.
Ou as mirabolantes curvas e
ângulos percorridos em alta velocidade em "Four" (Miles Davis) e "Oleo" (Sonny Rollins).
Na conclusão do texto do encarte, o pianista não deixa dúvidas sobre a intensidade da
aventura. Agradece aos parceiros por compartilharem a "batalha pela sobrevivência artística", num mundo "de falsidade,
leviandade, imitação, acanhamento, apatia, inconsciência,
preguiça, exibição, ignorância e
auto-engano". Contra tal diagnóstico, até a música parece
pouco remédio. Coisa de um
foolish heart, um "coração ingênuo": como o dele, como os
deles, como o nosso.
MY FOOLISH HEART (LIVE AT MONTREUX)
Artista: Keith Jarrett, Gary Peacock e Jack DeJohnette
Gravadora: ECM (importado)
Quanto: R$ 41 mais taxas em www.amazon.com
Avaliação: ótimo
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