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CRÍTICA
Irmãos revisitam tradição clássica do noir
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
A tradição do cinema clássico americano, aquela sólida e saudosa dança de gêneros
que marcou, entre os anos 30 e 50,
o auge da produção hollywoodiana, foi, desde sempre, o manancial criativo dos irmãos Coen.
A cada filme, a intenção da dupla de apropriar-se e de inscrever-se nessa tradição torna-se mais
clara. Indireta nas primeiras
obras, releituras contemporâneas
dos velhos gêneros, como o noir
"Gosto de Sangue" (84) e a
"screwball comedy" "Arizona
Nunca Mais" (86), essa referência
tornou-se cada vez mais evidente
à medida que os Coen, indo direto
à fonte, passaram a ambientar os
seus filmes de gênero na América
da primeira metade do século 20.
Assim, se em "Na Roda da Fortuna" (94) a "screwball" era revisitada em sua época original, em
"O Homem que Não Estava Lá", o
novo e primoroso filme da dupla,
o noir é restituído ao ambiente
americano do pós-guerra e às
proposições que fizeram a história do gênero. Destas, a principal,
a falência da autoridade masculina (a impotência do homem), serve de ponto de partida da trama.
Na Santa Rosa dos anos 50, cidade do interior da Califórnia onde Hitchcock ambientou seu "A
Sombra de uma Dúvida", um barbeiro lacônico e passivo (Billy Bob
Thornton), tipo catatônico-depressivo, passa a chantagear o
amante e patrão de sua mulher
(Frances McDormand), decidido
a tirar o cabresto da cabeça.
Seu gesto terá consequências
terríveis, e o fato de o protagonista ser mais consciencioso do que a
média dos heróis do noir empresta ao filme uma pretensão existencialista que transcende o fatalismo habitual do gênero. Não é o
destino que rege a tragicomédia
do barbeiro corno, mas sua própria e excessiva consciência.
Ao selarem, pelo monólogo interior, a indissociabilidade entre a
visão de mundo do filme e a consciência do personagem, os Coen
seguem as regras do classicismo
cinematográfico. Ao criar, na sequência central do filme, um hiato no discurso do personagem para fazê-lo perpetrar, como num
lapso, o seu maior crime, a dupla
afirma sua leitura da tradição.
O pecado e a delícia do cinema
dos Coen também estão, afinal,
no excesso de consciência. Um
excesso de consciência cinematográfica, que confere, por exemplo,
ao habitual "elo de falsários" do
noir, um charme e uma impostura puramente lúdico-cinefílicos.
Não há dúvida de que os Coen se
divertem à beça brincando de cinemão e deleitando-se com a inverosimilhança da brincadeira.
A prova está, sobretudo, nas cenas secundárias. Por um lado, reiteram o classicismo da dupla ao
abrirem espaço para que os atores
coadjuvantes brilhem mais do
que os centrais. Por outro, dão vazão ao humor peculiar dos Coen,
cujo irresistível despropósito chega, invariavelmente, a ferir o rigor
narrativo de seus longas.
Os Coen têm seus próprios lapsos, mas, em "O Homem que Não
Estava Lá", eles são contornados
pela homogeneidade de tom que
a atuação e a narração de Thornton, de uma lacônica elegância,
imprimem ao todo do filme.
O Homem que Não Estava Lá
The Man who Wasn't There
Direção: Joel Coen
Produção: EUA, 2001
Com: Billy Bob Thornton
Quando: a partir de hoje nos cines
Eldorado, Metrô Santa Cruz e circuito
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