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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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CRÍTICA

Edição respeita complexidade do original chinês

CHEN TSUNG JYE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nessa atmosfera de pós-modernismo em que as possibilidades de interpretação estão indefinidas, é quase um paradoxo tratar de um autor como Laozi (Lao Tzu nas traduções anteriores), o primeiro que rejeita a urbanização nascente e seu projeto tecnológico.
No caso de seu "Dao De Jing" ("Tao te King") -editado pela Hedra em tradução do original chinês-, podemos pensar em uma pluralidade de significados análogos que se refletem em pontos de vista diferentes.
Uma vez que a língua chinesa, principalmente a escrita clássica, é bem mais concisa e muito menos precisa e simbolicamente mais abrangente que a portuguesa, a tradução deve procurar não adquirir mais clareza e precisão de expressão do que o original. Isso se aplica ainda mais no caso de Laozi.
As três regras da tradução: transcrever o pensamento do original, manter o estilo, apresentar as facilidades e dificuldades do original, não devem ser tão rígidas quando os contextos culturais são diferentes. Essa tradução de Mario Sproviero procurou respeitar essas regras, e creio que na medida do possível conseguiu.
Um dos aspectos bem cuidados foi a preferência pelos termos concretos. O chinês, em vez de usar termos como "espírito e matéria", "mundo invisível e mundo visível", usa simplesmente "céu e terra". A palavra "dao", por exemplo, quer dizer "curso", "caminho", "discorrer", "escrever", "dizer" etc.
O conhecimento do contexto histórico evita erros. No capítulo quatro, por exemplo, a última sentença soa: "Eu não sei de quem é filho, afigura-se o anterior do ancestral". Muitos chegam a traduzir o final como "O Dao é anterior a Deus", no sentido de que o absoluto impessoal precede o pessoal. Ora, no texto de Laozi, compara-se o Dao a um pai, a um filho etc.
Di era o deus da dinastia Shang (1523-1028 a.C.) enquanto Tian era o deus da dinastia Zhou (1028-256 a.C.). Na decadência da dinastia Shang houve um processo de divinização dos ancestrais; por isso, Deus veio a denominar-se Shang Di, o Deus do Alto, o Altíssimo, para diferenciá-lo do ancestral também divino. Além disso, na tentativa de fundamentar o império chinês, na dinastia Qin (256-206 a.C.), o ancestral divinizado foi usado para denominar o imperador.
É contra esse uso que Laozi dirige sua crítica. O autor era contra a urbanização, não contra o culto dos antepassados, mas contra seu uso para a sacramentalização do império.
Por isso, a própria palavra "dao", usada até então como caminho moral ou de perfeição, foi usada pela primeira vez para indicar o Absoluto, Deus.
Uma das idéias mais interessantes do livro está no capítulo 15, em que se nota uma diferença básica entre o pensamento taoísta e o grego e ocidental. Desde Heráclito, a vida está relacionada com a luta: viver é lutar, competir etc. O que Laozi propõe é que a paz é vida, e a luta é morte. No taoísmo, o modelo é a gestação da vida. Assim o Dao gera e depois contempla com satisfação o que gerou.
Nesse momento em que a China emerge no mundo, seu passado se integra ao presente histórico global. Seria desejável assim dispormos em português dos escritos confucianos com esse mesmo tratamento.


Dao De Jing
    Autor: Laozi Tradutor: Mario Bruno Sproviero Editora: Hedra Quanto: R$ 42 (342 pág.)


Chen Tsung Jye é professor do Departamento de Língua e Literatura Chinesa da FFLCH/USP.


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