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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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"UMA QUESTÃO PESSOAL"

Em nome de um pai, em nome de um filho

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Para Bird, todos os tangos pareciam iguais." Não é a sentença que se espera num romance japonês, mas quase nada é o que se espera em "Uma Questão Pessoal". A começar pelo famoso bebê -famoso tanto por conta do pai-autor, Prêmio Nobel em 1994, quanto do pai-narrador, nesse romance de 30 anos antes.
A criança nasce com graves problemas cerebrais, aparentemente limitada às funções vegetativas. Já o pai se vê passando por uma olimpíada de problemas afetivos, sexuais e morais, ao longo do romance. Parecem pequenos, comparados à intuída grandeza do bebê, bem como à comprovada grandeza humana do pai dos dois, dentro e fora da literatura, o escritor japonês Kenzaburo Oe, 67.
Todos os tangos parecem iguais para o alcoólatra professor de cursinho, enredado com uma velha amiga enquanto a mulher convalesce do parto e seu bebê está prestes a perder a vida.
Mas não há nada de tango na prosa de Kenzaburo Oe. Uma de suas influências confessas é Rabelais (1494-1553), que lhe ensinou "a importância dos princípios materiais" na literatura, a "correspondência entre elementos cósmicos, sociais e físicos" e a "sobreposição das paixões da morte e do renascimento". Tudo isso trabalhado da perspectiva de um escritor "periférico", como ele disse na palestra do Prêmio Nobel.
O título dessa palestra, aliás, já define alguns parâmetros de leitura: "Japão, o Ambíguo e Eu"; alterando o título de seu predecessor japonês no pódio, Kawabata, que discursou em 1968 sobre "Japão, o Belo e Eu". A ambiguidade é uma marca dessa literatura onde ninguém escapa de culpas, mesmo sem ter culpa nenhuma. Ela se redobra nas sugeridas dificuldades de encontrar uma alternativa própria entre a cultura moderna e a tradicional, entre o Ocidente (que não é só do capital, mas da literatura) e um Oriente (jamais reduzido a samurais e cerejeiras).
Parece muito como pano de fundo para um romance de 200 páginas. Mas não é propriamente pano de fundo. É o coração das trevas, no fundo daquela África que Bird tanto quer conhecer, desde a primeira página, e pela qual há de viajar muito, sem sair do lugar. Para quem não entende japonês, parte da viagem decerto é indescritível. "Procurava uma espécie de sintaxe que não se enquadra na língua japonesa. (...) Estava escrevendo com uma intenção extremamente destrutiva", diria Oe em 1995, lembrando esses primeiros livros ("World Literature Today", v. 69). Não há como cobrar da boa tradução brasileira, de Shintaro Hayashi, que nos mostre o que seria a sintaxe destruidora do japonês de Oe. Com o que se tem, pode-se imaginar a violência verbal, comparável às violências de sentido desse livro para espíritos fortes.
Tanto maior a violência quanto mais prosaica a circunstância e mais natural e neutra a descrição. Toda a repulsa do pai pelo filho se faz sentir numa simples expressão como "cor de camarão cozido".
Que o escritor sabe muito bem o que está fazendo fica claro não só pelo domínio, nada artificioso, das referências (Apollinaire, Yeats, Blake, Mark Twain e outros), mas pela variedade de discursos (direto, indireto, indireto livre etc.) e o engenho da forma. Não causa surpresa que um leitor dos estudos de Bakhtin sobre Rabelais tenha interesse na polifonia; mas a habilidade de Oe para construir pequenas e grandes tramas em contraponto com a principal é uma virtude incomum.
Boa parcela do desconforto afetivo de quem lê será compensada, então, pelo interesse moral e pelas seduções do artesanato. A sedução da vida caída, o fascínio pelo reino dos suicidas, a antibeleza dos destroçados têm também sua dose de atração. Mas todos os tangos são iguais e, desse ponto de vista, tanto faz cantar em japonês. Experimentar todos os sofrimentos humanos e aproximar a literatura da vida é uma missão antiga e universal (o risco perene é o do sentimentalismo.)
Verdade que a vida se aproxima da literatura de modo muito particular, nesta "Questão Pessoal". O final da história, fora do livro, ficou conhecido. O filho doente de Oe chama-se Hikari ("Luz"). Tornou-se compositor. Com isso, três romances posteriores tratando da relação entre os dois chegaram a um termo em que o próprio Oe considera definitivo. Não é mais preciso escrever.
A imagem lembrada, muito rapidamente no fim, de um trem de soldados mutilados voltando da Guerra da Coréia, cria mais um contraponto notável e reinterpreta o que foi narrado sob outra luz. Todo o drama pessoal do narrador ganha acentos de outra compaixão, nem maior nem mais urgente do que as paixões de uma paternidade difícil, mas igualmente impossível de ser contornada. Quarenta anos depois do romance, a "questão pessoal" ressurge com urgência inesperada e torna mais que preciso ler um escritor como Kenzaburo Oe.


Uma Questão Pessoal
     Autor: Kenzaburo Oe Tradução: Shintaro Hayashi Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 33 (224 págs.)



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