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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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INÉDITOS


"Retratos Londrinos" reúne pela primeira vez em português crônicas jornalísticas de Charles Dickens, escritas antes de suas obras mais célebres


Farpas londrinas

Charles Dickens (1812-1870), antes de tornar-se o escritor de obras como "Oliver Twist", era um jovem jornalista que publicava crônicas sobre a sociedade britânica na imprensa. Seus primeiros textos foram reunidos em "Retratos Londrinos" e estavam inéditos em português até este mês, quando a editora Record lança uma versão do volume.
Leia abaixo um trecho de "As Quatro Irmãs", texto que foi publicado no "Evening Chronicle", em 18 de junho de 1835 e que faz parte da coletânea.
 
A fileira de casas onde vivem aquela velha senhora e seu vizinho inoportuno compreende, dentro de seus limites, um grande número de personagens, e disso não temos a menor dúvida. Muito mais até do que qualquer outro bairro ou paróquia poderia ter. Mas, como de fato não desejamos alongar esses nossos retratos paroquianos, talvez seja melhor selecionar os mais curiosos e introduzi-los logo de uma vez sem maiores delongas.
Falemos, então, das quatro senhoritas Willis, que se estabeleceram em nossa paróquia há 13 anos. Não deixa de ser melancólico constatar que o velho adágio que diz "o tempo passa, inexorável, sem poupar ninguém" se aplica com tanta força a uma grande parcela das criaturas e, por mais que desejássemos esconder o fato, a verdade é que mesmo há 13 anos as senhoritas Willis já estavam longe de ser jovens.
Nosso trabalho como cronistas paroquiais, contudo, está acima de qualquer coisa, e somos obrigados a declarar que, desde aquela época, as autoridades em casos matrimoniais consideravam que a mais jovem das senhoritas Willis estava em uma situação bem complicada, enquanto a mais velha delas já estava definitivamente descartada, como se tivesse sido esquecida pela humanidade.
Em todo caso, as senhoritas Willis alugaram a casa que tinha acabado de ser pintada e lixada do chão ao teto. As paredes internas eram todas revestidas de madeira, os mármores estavam limpos, as velhas grades haviam sido retiradas e aquecedores, instalados. Quatro árvores foram plantadas no jardim dos fundos e uma porção de cestinhas cheias de cascalho, espalhadas pelo da frente.
Carroças trazendo móveis elegantes não paravam de chegar. Venezianas foram colocadas nas janelas e os carpinteiros, empenhados em vários serviços de conserto, reparos e alterações do lugar, não perdiam a chance de comentar com as criadas das outras casas da rua como as senhoritas Willis estavam começando de forma magnífica sua vida por lá.
As criadas contaram o fato às patroas, as patroas contaram às amigas e começou a circular pela paróquia um vago rumor de que no número 25 da Gordon Place se haviam instalado quatro damas imensamente ricas.
Finalmente as senhoritas Willis se mudaram. E aí as visitas começaram. A casa era o mais bem-acabado exemplo de asseio -afinal, ali moravam as quatro senhoritas Willis. Cada mínima peça da residência tinha um quê de formalismo e frieza -afinal, ali moravam as quatro senhoritas Willis. Nada era visto fora de seu lugar, nem mesmo uma mísera cadeira -assim como nenhuma das quatro senhoritas Willis era vista fazendo algo fora do normal do que costumava fazer. Lá estavam elas, sentadas nos mesmos lugares, fazendo exatamente as mesmas coisas às mesmas horas.
A mais velha delas costumava tricotar, enquanto a segunda desenhava e as outras duas faziam duetos ao piano. Elas pareciam não ter vida independente uma das outras, tendo decidido ficar juntas até o fim dos tempos. Eram como grandes figuras das três Graças em uma tapeçaria, acrescidas posteriormente de uma outra do mesmo tipo, como em um lanche escolar. Ou, então, eram as três Parcas com mais uma irmã, ou gêmeas siamesas multiplicadas por dois (1).
A mais velha das senhoritas Willis tornou-se extremamente mal-humorada -o que fez com que todas as outras logo ficassem mal-humoradas também. A mais velha das senhoritas Willis tornou-se resmungona e muito religiosa -as outras irmãs ficaram decididamente resmungonas e carolas. Qualquer coisa que a mais velha fazia, as outras faziam também. E qualquer coisa que alguma outra pessoa fizesse, elas desaprovavam completamente. E assim iam vegetando, vivendo numa harmonia polar entre si. Vez por outra estendiam sua vidinha gelada aos vizinhos, quando acontecia de saírem ou de receberem alguma visita "sossegada" em casa.
Três anos se passaram dessa exata maneira, até que aconteceu um fenômeno imprevisto e extraordinário. As senhoritas Willis passaram a sentir os sintomas do verão e, lentamente, o gelo começou a derreter, até que o degelo fosse completo. Mas como era possível? Uma das quatro senhoritas Willis ia se casar!
Mas de onde veio o tal marido? Sob quais sentimentos o pobre homem poderia estar atuando? Ou, então, qual teria sido o processo racional que conseguiu convencer as quatro senhoritas Willis de que era possível um homem se casar com uma delas sem, necessariamente, ter de se casar com todas as outras? Essas eram dúvidas muito profundas que nós tínhamos de solucionar.
De qualquer maneira, o certo é que as visitas do Sr. Robinson (um cavalheiro que trabalhava numa repartição pública e que tinha, além do mais, um bom salário e alguns bens) eram bem recebidas, com as quatro senhoritas Willis sendo cortejadas sem distinção pelo já citado senhor. Por isso a vizinhança estava em polvorosa, tentando descobrir qual das quatro senhoritas Willis era a felizarda, e o anúncio feito pela mais velha das senhoritas Willis não ajudou nem um pouco a solucionar o problema: "Nós vamos nos casar com o Sr. Robinson".
Era extraordinário. Elas estavam tão identificadas umas com as outras que a curiosidade de todos -até da própria velha senhora- já estava quase passando dos limites. O assunto era discutido em cada mesinha de carteado ou durante o chá. O cavalheiro idoso, de conhecida natureza ardilosa, não hesitou em expressar sua decidida opinião de que o Sr. Robinson tinha ascendência oriental -na verdade, muçulmana- e por isso tencionava casar com a família inteira. E todos os vizinhos ficavam balançando a cabeça com gravidade, achando que aquela história era realmente muito misteriosa. Eles esperavam que tudo terminasse bem, mas que era estranho, era. (...)
Por volta das 7h45 de uma bela manhã, duas reluzentes carruagens chegaram à porta das senhoritas Willis. Dez minutos antes, o Sr. Robinson havia chegado em um cabriolé. Ele estava vestindo um paletó azul-claro, calças grossas de lã, lenço de pescoço, sapatos finos e luvas. (...) A notícia correu rapidamente de uma casa a outra. Estava claro que o grande dia havia chegado. Toda a vizinhança se postou para observar por trás das venezianas, aguardando o desenlace da cena com a respiração em suspenso (...)


(1) as três Graças e as Parcas: figuras mitológicas. As Graças eram as deusas dos banquetes, da dança e das artes; as Parcas eram as entidades que teciam o fio do destino humano (N.do T.).


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