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CARTAS DA EUROPA
Dormir com Scarlett Johansson
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
A cordo tarde. Café. Jornal. E então leio na imprensa inglesa que será possível,
pela módica quantia de R$ 45,
dormir com Scarlett Johansson.
Ajeito os óculos. Aproximo o jornal. Confirmo. Confirma-se. Parece que Scarlett gravou um CD
com canções de embalar que fará
as delícias da audiência masculina, ou feminina, ou mista. Pondero. A oferta é tentadora, admito. Mas, e aqui o cronista retira os
óculos com gesto cansado, pousando o jornal sobre as pernas e
deixando o corpo cair sobre as almofadas da cama, será que Scarlett vale mesmo R$ 45? Entendam: Scarlett dá para o gasto.
Mas, como alguém dizia, ser bonitinha mas ordinária, às vezes, é
combinação assaz desagradável.
Scarlett tem o sexo escrito na cara
e essa confissão vulgar aniquila
qualquer imaginação privada.
Exagero?
Basta olhar para a última capa
da última "Vanity Fair", exclusivamente dedicada a Hollywood,
para perceber as diferenças e as
distâncias: Scarlett Johansson e a
atriz inglesa Keira Knightley, como Deus as deitou ao mundo, iluminadas por luz intensa sobre
fundo negro. E o estilista Tom
Ford, entre ambas, com o peito à
mostra, nitidamente para satisfazer as minorias. Agora escolham:
Scarlett ou Keira?
Pessoalmente, não tenho dúvidas: Scarlett parece a empregada
doméstica que Keira contratou
para fazer limpezas lá em casa.
Vejam: Keira, a fazer beicinho, o
rosto muito digno e ligeiramente
levantado, uma pose de provocação sofisticada. Como quem diz:
João, você é um idiota mas eu te
amo. Scarlett está mais embaixo,
deitada de costas ("et pour causeà"), olhar bovino, a pensar na
novela das oito e nas camisas que
terá de engomar antes de fazer o
jantar.
Cruel, sim, cruel. Mas altamente sintomático: Scarlett representa bem a estrela de cinema que o
tempo acabou por consagrar.
Longe, muito longe, de gerações
sucessivas de atrizes que, como
Hitchcock diria numa célebre entrevista a Truffaut, são modelos
exteriores de castidade. Pelo menos, até chegarem ao banco traseiro de um táxi anônimo e urbano. Penso em Ingrid Bergman
beijando carnivoramente Cary
Grant. Audrey Hepburn, no parapeito da janela, dedilhando
"Moon River" na guitarra. Natalie Wood filmada por Nicholas
Ray e amada por Nicholas Ray. E,
Deus meu, Kathleen Turner, que
vi nos palcos como Mrs. Robinson, o último esgar antes da vulgaridade total. Quando tentei invadir o cenário, os seguranças
não deixaram.
Hoje, com a exceção de Keira
Knightley, sem dúvida a melhor
Elizabeth Bennet imaginável para não insultar o "Orgulho e Preconceito" de Miss Jane, a "Vanity
Fair", que foi casa lendária de
Dorothy Parker e Robert Benchley, escolhe Sienna Miller, Reese
Witherspoon, Pamela Anderson,
Jennifer Aniston e a inacreditável
Angelina Jolie para celebrar o sexo frágil. Noto a ausência, evidente, de Paris Hilton, a famosa herdeira que se notabilizou em tempos por filmar (e divulgar) sexo
com o namorado. Uma proeza?
Sem dúvida. Mas será que chega
para ganhar o Oscar da consagração feminina?
Temo bem que sim: no clima de
vulgarização em curso, qualquer
Paris Hilton leva claríssima vantagem sobre as divas do passado.
Décadas e décadas de "luta" progressista não ofereceram apenas
conquistas legais. Ofereceram
também estes excessos de caricatura, mulheres que não apenas
quiseram os mesmos direitos que
os homens como se tornaram tão
vulgares como eles. Não admira
que a sensualidade seja, hoje,
uma questão literal: o corpo não
existe para ser descoberto ou insinuado. O corpo deve ser imposto e
exposto, como as carnes no açougue lá do bairro.
Talvez isso seja o preço a pagar
pela "liberdade" conquistada.
Talvez, talvez. Mas, se me permitem, eu tenho saudades desse
tempo em que a imaginação despia primeiro o que só os olhos conheceriam depois.
Desculpa, Scarlett. As camisas
estão sobre a tábua.
Colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações, João Pereira Coutinho escreve toda quarta-feira
neste espaço
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