São Paulo, quarta-feira, 01 de março de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Dormir com Scarlett Johansson

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

A cordo tarde. Café. Jornal. E então leio na imprensa inglesa que será possível, pela módica quantia de R$ 45, dormir com Scarlett Johansson. Ajeito os óculos. Aproximo o jornal. Confirmo. Confirma-se. Parece que Scarlett gravou um CD com canções de embalar que fará as delícias da audiência masculina, ou feminina, ou mista. Pondero. A oferta é tentadora, admito. Mas, e aqui o cronista retira os óculos com gesto cansado, pousando o jornal sobre as pernas e deixando o corpo cair sobre as almofadas da cama, será que Scarlett vale mesmo R$ 45? Entendam: Scarlett dá para o gasto. Mas, como alguém dizia, ser bonitinha mas ordinária, às vezes, é combinação assaz desagradável. Scarlett tem o sexo escrito na cara e essa confissão vulgar aniquila qualquer imaginação privada. Exagero?
Basta olhar para a última capa da última "Vanity Fair", exclusivamente dedicada a Hollywood, para perceber as diferenças e as distâncias: Scarlett Johansson e a atriz inglesa Keira Knightley, como Deus as deitou ao mundo, iluminadas por luz intensa sobre fundo negro. E o estilista Tom Ford, entre ambas, com o peito à mostra, nitidamente para satisfazer as minorias. Agora escolham: Scarlett ou Keira?
Pessoalmente, não tenho dúvidas: Scarlett parece a empregada doméstica que Keira contratou para fazer limpezas lá em casa. Vejam: Keira, a fazer beicinho, o rosto muito digno e ligeiramente levantado, uma pose de provocação sofisticada. Como quem diz: João, você é um idiota mas eu te amo. Scarlett está mais embaixo, deitada de costas ("et pour causeà"), olhar bovino, a pensar na novela das oito e nas camisas que terá de engomar antes de fazer o jantar.
Cruel, sim, cruel. Mas altamente sintomático: Scarlett representa bem a estrela de cinema que o tempo acabou por consagrar. Longe, muito longe, de gerações sucessivas de atrizes que, como Hitchcock diria numa célebre entrevista a Truffaut, são modelos exteriores de castidade. Pelo menos, até chegarem ao banco traseiro de um táxi anônimo e urbano. Penso em Ingrid Bergman beijando carnivoramente Cary Grant. Audrey Hepburn, no parapeito da janela, dedilhando "Moon River" na guitarra. Natalie Wood filmada por Nicholas Ray e amada por Nicholas Ray. E, Deus meu, Kathleen Turner, que vi nos palcos como Mrs. Robinson, o último esgar antes da vulgaridade total. Quando tentei invadir o cenário, os seguranças não deixaram.
Hoje, com a exceção de Keira Knightley, sem dúvida a melhor Elizabeth Bennet imaginável para não insultar o "Orgulho e Preconceito" de Miss Jane, a "Vanity Fair", que foi casa lendária de Dorothy Parker e Robert Benchley, escolhe Sienna Miller, Reese Witherspoon, Pamela Anderson, Jennifer Aniston e a inacreditável Angelina Jolie para celebrar o sexo frágil. Noto a ausência, evidente, de Paris Hilton, a famosa herdeira que se notabilizou em tempos por filmar (e divulgar) sexo com o namorado. Uma proeza? Sem dúvida. Mas será que chega para ganhar o Oscar da consagração feminina?
Temo bem que sim: no clima de vulgarização em curso, qualquer Paris Hilton leva claríssima vantagem sobre as divas do passado. Décadas e décadas de "luta" progressista não ofereceram apenas conquistas legais. Ofereceram também estes excessos de caricatura, mulheres que não apenas quiseram os mesmos direitos que os homens como se tornaram tão vulgares como eles. Não admira que a sensualidade seja, hoje, uma questão literal: o corpo não existe para ser descoberto ou insinuado. O corpo deve ser imposto e exposto, como as carnes no açougue lá do bairro.
Talvez isso seja o preço a pagar pela "liberdade" conquistada. Talvez, talvez. Mas, se me permitem, eu tenho saudades desse tempo em que a imaginação despia primeiro o que só os olhos conheceriam depois.
Desculpa, Scarlett. As camisas estão sobre a tábua.


Colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações, João Pereira Coutinho escreve toda quarta-feira neste espaço


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