São Paulo, quarta-feira, 01 de março de 2006

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MARCELO COELHO

Duas ou três idéias sobre a internet

Pais e mães plugados na internet não precisam se preocupar. Alguns berçários e escolinhas maternais oferecem, graças a webcams espalhadas em toda parte -do escorregador ao tanque das tartarugas, do setor de peniquinhos à sala da diretoria- , a possibilidade de acompanhar em tempo integral, on-line, as atividades das crianças.
A idéia poderia ser adaptada para os nossos presídios, reconhecidamente falhos quando se trata de vigiar o comportamento dos internos. Quem sabe, para diminuir os custos, o Estado pudesse comercializar a exibição do que viesse a acontecer nas celas: eis um "reality show" e tanto, para passar no horário da madrugada.
Volto depois ao tema dos presídios. Estava falando da pré-escola, passo agora ao primeiro e segundo graus. Um novo problema para os professores, nas classes de adolescentes, é o uso indiscriminado do celular. Não que os alunos fiquem falando no telefone enquanto o mestre se esfalfa lá na frente. Segundo reportagem publicada há alguns dias no "Estado de S. Paulo", a desatenção e a indisciplina se fazem com mais insídia, em silêncio. São os joguinhos, os torpedos, as conversas pelo MSN o que dispersa a classe, inutilmente congregada entre quatro paredes.
Entre os adultos, comportamentos semelhantes não são novidade. Profissionais diante de um terminal de computador podem fingir que estão trabalhando, enquanto imergem nas salas de bate-papo. Inventaram-se dispositivos contra isso e, provavelmente, os antídotos desses dispositivos. Trata-se de outro tipo de vírus, na verdade, a sabotar os interesses industriais. Não existem só os que chegam por e-mail, atingindo o software eletrônico; há os que atingem, se podemos dizer assim, o software humano.
Como o consumo de álcool ou a destruição física das máquinas, característica dos primeiros movimentos contra a disciplina industrial no século 19, o vício dos joguinhos e dos chats constitui um dos muitos recursos que a estupidez inventa para preservar, entre escravos, alguma sensação de liberdade. Preso a tarefas burocráticas, o funcionário deixa alegremente que a internet roube o seu tempo, para não entregá-lo ao empregador.
É assim que, atualmente, a desatenção se tornou uma espécie de rebeldia. No trabalho, tanto quanto nas escolas, a presença física do funcionário ou do aluno não garante nada no que diz respeito à sua dedicação real.
Do mesmo modo, vai ficando antiquada a idéia de que guardar alguém entre quatro paredes equivale a extinguir sua periculosidade. Claro que o uso de celulares pelos presidiários tem de ser reprimido de qualquer modo; mas esta exigência é um sinal de que, aos poucos, a liberdade humana deixa de estar associada ao poder de entrar e sair de um lugar qualquer. Mais do que encarcerar um ser humano dentro de um cubículo, privá-lo da liberdade hoje em dia significa desconectá-lo, isolá-lo do espaço virtual.
Ou então conectá-lo mais ainda. Chips introduzidos na própria carne dos condenados permitem o acompanhamento de suas atividades à distância. Dispositivos simétricos estão, ao que se noticia, à disposição de milionários, permitindo seu rastreamento em caso de seqüestro.
Descrevo ainda um ou dois fenômenos do mesmo gênero, antes de arriscar uma conclusão. Por toda parte, circulam pessoas com fones de ouvido, ligadas a um iPod ou sei lá que outra geringonça, mentalmente alheios ao espaço físico que compartilham com seus semelhantes. Com o celular não é diferente.
A última novidade nessa área é o carro que já vem com aparelho de DVD; ouvir música ou falar no celular não é bastante para quem está no trânsito ou na estrada, e as crianças no banco de trás podem, agora, seguir uma viagem mental rumo a outros destinos.
Que significam todos esses exemplos? Não se trata de dizer, apenas, que, com o progresso tecnológico, as distâncias diminuíram, que a troca de informações se acelerou. Nos casos que relatei, está em jogo outra coisa: os próprios conceitos de "presença" e de "ausência" se tornaram problemáticos. Uma pessoa pode estar sentada ao nosso lado e ser, simultaneamente, inencontrável. Paralelamente, os pais que se ausentam de uma escolinha não deixaram de estar, o tempo todo, plugados nas atividades de seus filhos.
O desaparecimento da distância, assegurado pelos meios eletrônicos, faz com que ninguém, na verdade, esteja totalmente separado nem totalmente próximo dos seus semelhantes; não está ausente, quando se afasta, nem presente, quando está junto.
Não sei qual psicólogo ou filósofo disse isso primeiro, mas aqui vai: é a partir da ausência, da separação, que o ser humano começa a simbolizar. Um símbolo só se cria "no lugar" de algo que está fora de nosso alcance, que se recusa a aparecer instantaneamente para nós. Uma tela de computador -para não falar do monitor da TV ou do celular- apressa cada vez mais, até levá-los ao curto-circuito, os processos de espera, de elaboração, de mediação imaginativa a que estávamos acostumados.
Décadas atrás, já se reclamava do uso de calculadoras eletrônicas; muitas pessoas, hoje em dia, ignoram totalmente as operações aritméticas mais simples. Outras operações mentais talvez estejam indo pelo mesmo caminho. Não sei até que ponto decorar a tabuada é essencial ao ser humano; não mais, talvez, do que as antigas bolas de ferro que se prendiam aos pés dos condenados.
Mas pode ser que a comparação valha ao contrário: todos nós, como prisioneiros, andamos de cá para lá amarrados a nossos aparelhos, laptops, palmtops, celulares e fones de ouvido, aos quais devotamos um amor, uma gratidão, uma fidelidade digna de cães.


@ - coelhofsp@uol.com.br


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