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MARCELO COELHO
Duas ou três idéias sobre a internet
Pais e mães plugados na internet não precisam se
preocupar. Alguns berçários e
escolinhas maternais oferecem,
graças a webcams espalhadas
em toda parte -do escorregador ao tanque das tartarugas,
do setor de peniquinhos à sala
da diretoria- , a possibilidade
de acompanhar em tempo integral, on-line, as atividades das
crianças.
A idéia poderia ser adaptada
para os nossos presídios, reconhecidamente falhos quando se trata
de vigiar o comportamento dos
internos. Quem sabe, para diminuir os custos, o Estado pudesse
comercializar a exibição do que
viesse a acontecer nas celas: eis
um "reality show" e tanto, para
passar no horário da madrugada.
Volto depois ao tema dos presídios. Estava falando da pré-escola, passo agora ao primeiro e segundo graus. Um novo problema
para os professores, nas classes de
adolescentes, é o uso indiscriminado do celular. Não que os alunos fiquem falando no telefone
enquanto o mestre se esfalfa lá na
frente. Segundo reportagem publicada há alguns dias no "Estado
de S. Paulo", a desatenção e a indisciplina se fazem com mais insídia, em silêncio. São os joguinhos,
os torpedos, as conversas pelo
MSN o que dispersa a classe, inutilmente congregada entre quatro
paredes.
Entre os adultos, comportamentos semelhantes não são novidade. Profissionais diante de
um terminal de computador podem fingir que estão trabalhando, enquanto imergem nas salas
de bate-papo. Inventaram-se dispositivos contra isso e, provavelmente, os antídotos desses dispositivos. Trata-se de outro tipo de
vírus, na verdade, a sabotar os interesses industriais. Não existem
só os que chegam por e-mail, atingindo o software eletrônico; há os
que atingem, se podemos dizer assim, o software humano.
Como o consumo de álcool ou a
destruição física das máquinas,
característica dos primeiros movimentos contra a disciplina industrial no século 19, o vício dos
joguinhos e dos chats constitui
um dos muitos recursos que a estupidez inventa para preservar,
entre escravos, alguma sensação
de liberdade. Preso a tarefas burocráticas, o funcionário deixa
alegremente que a internet roube
o seu tempo, para não entregá-lo
ao empregador.
É assim que, atualmente, a desatenção se tornou uma espécie
de rebeldia. No trabalho, tanto
quanto nas escolas, a presença física do funcionário ou do aluno
não garante nada no que diz respeito à sua dedicação real.
Do mesmo modo, vai ficando
antiquada a idéia de que guardar
alguém entre quatro paredes
equivale a extinguir sua periculosidade. Claro que o uso de celulares pelos presidiários tem de ser
reprimido de qualquer modo;
mas esta exigência é um sinal de
que, aos poucos, a liberdade humana deixa de estar associada ao
poder de entrar e sair de um lugar
qualquer. Mais do que encarcerar
um ser humano dentro de um cubículo, privá-lo da liberdade hoje
em dia significa desconectá-lo,
isolá-lo do espaço virtual.
Ou então conectá-lo mais ainda. Chips introduzidos na própria
carne dos condenados permitem
o acompanhamento de suas atividades à distância. Dispositivos simétricos estão, ao que se noticia,
à disposição de milionários, permitindo seu rastreamento em caso de seqüestro.
Descrevo ainda um ou dois fenômenos do mesmo gênero, antes
de arriscar uma conclusão. Por
toda parte, circulam pessoas com
fones de ouvido, ligadas a um
iPod ou sei lá que outra geringonça, mentalmente alheios ao espaço físico que compartilham com
seus semelhantes. Com o celular
não é diferente.
A última novidade nessa área é
o carro que já vem com aparelho
de DVD; ouvir música ou falar no
celular não é bastante para quem
está no trânsito ou na estrada, e
as crianças no banco de trás podem, agora, seguir uma viagem
mental rumo a outros destinos.
Que significam todos esses
exemplos? Não se trata de dizer,
apenas, que, com o progresso tecnológico, as distâncias diminuíram, que a troca de informações
se acelerou. Nos casos que relatei,
está em jogo outra coisa: os próprios conceitos de "presença" e de
"ausência" se tornaram problemáticos. Uma pessoa pode estar
sentada ao nosso lado e ser, simultaneamente, inencontrável.
Paralelamente, os pais que se ausentam de uma escolinha não
deixaram de estar, o tempo todo,
plugados nas atividades de seus
filhos.
O desaparecimento da distância, assegurado pelos meios eletrônicos, faz com que ninguém,
na verdade, esteja totalmente separado nem totalmente próximo
dos seus semelhantes; não está
ausente, quando se afasta, nem
presente, quando está junto.
Não sei qual psicólogo ou filósofo disse isso primeiro, mas aqui
vai: é a partir da ausência, da separação, que o ser humano começa a simbolizar. Um símbolo só se
cria "no lugar" de algo que está
fora de nosso alcance, que se recusa a aparecer instantaneamente
para nós. Uma tela de computador -para não falar do monitor
da TV ou do celular- apressa cada vez mais, até levá-los ao curto-circuito, os processos de espera, de
elaboração, de mediação imaginativa a que estávamos acostumados.
Décadas atrás, já se reclamava
do uso de calculadoras eletrônicas; muitas pessoas, hoje em dia,
ignoram totalmente as operações
aritméticas mais simples. Outras
operações mentais talvez estejam
indo pelo mesmo caminho. Não
sei até que ponto decorar a tabuada é essencial ao ser humano; não
mais, talvez, do que as antigas bolas de ferro que se prendiam aos
pés dos condenados.
Mas pode ser que a comparação
valha ao contrário: todos nós, como prisioneiros, andamos de cá
para lá amarrados a nossos aparelhos, laptops, palmtops, celulares e fones de ouvido, aos quais
devotamos um amor, uma gratidão, uma fidelidade digna de
cães.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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