São Paulo, sábado, 01 de abril de 2000


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"O RAP DO PEQUENO PRÍNCIPE"
Guerra social invisível se manifesta na tela

especial para a Folha

A onda agora é documentário. Por quê? Porque é mais barato -está difícil captar recursos por meio das leis de incentivo, depois de alguns investimentos de qualidade e administração duvidosas- e mantém a indústria aquecida.
"Sempre teve documentário. O que houve foi um refluxo. A Lei do Audiovisual apareceu, todos fizeram filmes que estavam na gaveta, veio muita gente nova, e estava na hora de os documentários surgirem", diz Clélia Bessa, produtora de "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas" e "Como Ser Solteiro".
"O retorno do documentário começou com o filme "Cineasta da Selva". Agora, a média das produtoras é de dois filmes de ficção para um documentário. Quando havia poucos filmes, foi o momento dos curtas. Agora, que secou o dinheiro das leis, o documentário forma gerações", completa Bessa.
Outra explicação plausível para a quantidade de documentários é a tendência de recontar a história do Brasil e entender os dilemas do país, que faz 500 anos. A desigualdade social e a impunidade refletem-se no aumento da violência urbana, que destoa da visão utópica que Pero Vaz de Caminha teve ao desembarcar por aqui.
O cerco vai se fechando. Uma horda de excluídos cinge as grandes cidades, naquilo que se designou periferia, sinônimo de violência e abandono. Uma nova cultura nasce de fora para dentro. Na literatura, Paulo Lins, Ferréz e Fernando Bonassi narram a guerra social invisível que se instalou no Brasil.
No cinema, "Universo Paralelo", documentário inédito de Maurício Eça, desvenda os segredos do Capão Redondo, enquanto "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas" exibe as contradições de uma festiva e folclórica Recife. Em ambos os filmes, o rap é citado como a arma não violenta de uma guerra civil não declarada.
Enquanto uma tomada aérea do filme "Rap do Pequeno Príncipe" exibe os bairros da periferia de Recife, a letra da música "Salve", dos Racionais, enumera os bairros periféricos de São Paulo, Rio de Janeiro e Santos. O próprio Mano Brown aparece no Zé do Pinho, reduto do movimento rap pernambucano, apontando que as periferias das duas cidades, Recife e São Paulo, são semelhantes.
O filme começa com um tambor. Grafites do movimento hip hop formam os créditos. Um homem arrasta-se como um lagarto para pagar uma promessa, em uma procissão. Surge o rosto jovem, quase inocente, de Helinho, o pequeno príncipe que matou 44 pessoas e cumpre pena no presídio Professor Aníbal Bruno. É um garoto.
Sua mãe pede desculpas às mães das vítimas. Ela diz: "Meu filho queria ser Deus. Mas nem Deus deu jeito nos homens". "Alma sebosa, não aguentamos mais!", canta a banda de rap Faces do Subúrbio. "Alma sebosa não serve para nada, é um inútil", diz um matador, em entrevista.
"O Helinho achava que o papel dele era o de limpar a sociedade. Ele ficava indignado ao ver um estuprador tomando cerveja no boteco. É a mesma justificativa para a criminalidade dos cangaceiros. É o "escudo ético", termo criado por Frederico de Mello, o maior "cangaceirólogo" do Brasil. Por exemplo, Lampião nunca matou o sujeito que matou o seu pai, pois não era esse o seu papel", explica Paulo Caldas.
Mais uma vez, é Mano Brown quem resume o sentimento da periferia: "O Brasil vai demorar mais 500 anos para ser uma nação". E o rapper Garnisé, que tatua o rosto de Guevara diante da câmera, não mede as palavras: "Estou aqui para defender os direitos do proletariado brasileiro".
Helinho diz, inconformado, em entrevista: "Como posso eu estar preso, enquanto um bando de sebosos está solto?".
Enquanto tais indivíduos não desvendarem os verdadeiros sebosos, a elite brasileira faz a festa. E é na periferia que nasce uma cultura brasileira inconformada e engajada, no mês em que se comemoram os 500 anos. (MRP)


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