São Paulo, sábado, 01 de abril de 2000


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RESENHA DA SEMANA
A linguagem é o diabo

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Escrito há dezesseis anos e só agora publicado, "O "O" - A Ficção da Literatura em "Grande Sertão: Veredas'", de João Adolfo Hansen, é produto de um tempo em que ainda se acreditava no ensaio como um gênero criativo em si, e não apenas relato reflexivo sobre alguma coisa.
O texto de Hansen é daqueles cujos trechos os jornalistas de hoje volta e meia se deleitam em citar fora do contexto para, diante da dificuldade de compreendê-lo, e fazendo apelo à cumplicidade de um senso comum preconceituoso, ridicularizar seu hermetismo criptográfico.
É fácil não ver sentido em alguns trechos desse ensaio quando tirados do contexto, porque simplesmente não faz sentido algum tirá-los do contexto. O texto de Hansen pode por vezes não ser claro, mas é brilhante.
O ensaísta quer combinar Guimarães Rosa com Gilles Deleuze. Tanto um como o outro são autores cujos estilos tão díspares (um, transbordante; o outro, fazendo uso de uma língua pobre para transmitir idéias complexas) se prestam com facilidade, pela força de sua inovação e originalidade, aos mimetismos.
Uma vez abertos os caminhos, nada mais fácil do que cair num cacoete superficial de Rosa -e escrever numa espécie de regionalismo maneirista repleto de neologismos "kitsch"-, assim como basta repetir com alguma insistência os conceitos inventados por Deleuze para reduzi-los a clichês e palavras de ordem, o oposto do que propunha o filósofo francês.
Hansen não faz mimetismo desses autores mas os incorpora como instrumentos na sua própria maneira de pensar, uma forma apaixonada.
Seu texto pode não ser dos mais simples e límpidos, mas nas suas dobras e circunvoluções vai criando uma paisagem de idéias a ser desbravada, como num jogo filosófico ou romance. Tenta fazer da crítica literária filosofia e ficção.
Faz uma teoria dos signos, de inspiração deleuziana, uma "lógica do sentido" aplicada a Guimarães Rosa, na tentativa de mostrar que a linguagem em "Grande Sertão: Veredas" não funciona como representação de um mundo prévio (a realidade), mas como invenção, deslocamento e intervenção.
"Rosa tem a imaginação de um homem de teatro que se recusasse a representar fatos, coisas, ações, objetos do movimento e que efetuasse o movimento mesmo, sempre aquém ou além da representação, escorrendo além dos lados da moldura, sem forma ou estilo adequados, interpostos entre o objeto designado e o movimento efetuado. (...) A linguagem de Rosa é operada pela diferença: reescreve a língua, além e aquém da estória narrada; ficção da ficção, (...) exploração de um campo de falas anônimas que, no efeito de deslocamento, encenam o inexpresso do sentido."
Em vários momentos, Hansen dialoga com os que viam em Guimarães Rosa um escritor reacionário, adequado a um tempo de autoritarismo militar.
É manifesta a preocupação do ensaísta de lançar os argumentos contra essa imagem equivocada, hoje praticamente inconcebível.
Hansen tenta mostrar como, pela potência do paradoxo e do "nonsense", e de um procedimento peculiar de deslocamento dos signos, o autor de "Grande Sertão: Veredas" escapa ao círculo vicioso em que sua obra poderia ser criticada ainda como mera representação de uma realidade, para fazer uma revolução dos sentidos.
"O forte efeito literário, conseguido à custa de procedimentos como os citados (...) é político: é que, pela primeira vez, em "Grande Sertão: Veredas" falam as linguagens do mato, sem mediação de narrador ilustrado que, na ficção brasileira, sempre usurpou o lugar de fala do sertanejo, quando o constituiu como natureza, idílica ou decaída, como outro inalcançável ou a ser convertido, ou, ainda, como outro tristemente alienado nas garras do capital, nas belas sínteses ideais de Alencar, na tolice naturalista, na força comovente e espantosa de Euclides, na amargura pessimista deste admirável Graciliano."
Ou seja: a narração em Guimarães Rosa "não se unifica como fala do "sertão" nem como fala da "cidade", mas avança dividida, fazendo-as entrechocar-se", desfazendo e refazendo a lógica da própria linguagem, expondo seus limites e contradições.
Em Rosa, a língua deixa de ser simples matéria-prima para se tornar a própria matéria (única e final) da ficção. O "nonsense" mostra que, assim como o diabo, a linguagem é o que "se esvazia à medida que se enche no nada". Porque é só pelo paradoxo que ela pode dizer o indizível, que é o objetivo de toda grande literatura.
Como o diabo (o "O" do título), ela é polissemia, paradoxo e contradição, mas também recriação do mundo.
A linguagem é pacto com o diabo, porque, como todo signo, designa pela ausência da coisa uma coisa que ao mesmo tempo ela reinventa pela imaginação.



Avaliação:    

Livro: O "O" - A Ficção da Literatura em "Grande Sertão: Veredas" Autor: João Adolfo Hansen Editora: Hedra (0/xx/11/867-8304) Quanto: R$ 17 (198 págs.)

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