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RESENHA DA SEMANA
A linguagem é o diabo
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Escrito há dezesseis anos e só
agora publicado,
"O "O" - A Ficção
da Literatura em
"Grande Sertão:
Veredas'", de João Adolfo Hansen, é produto de um tempo
em que ainda se acreditava no
ensaio como um gênero criativo em si, e não apenas relato reflexivo sobre alguma coisa.
O texto de Hansen é daqueles
cujos trechos os jornalistas de
hoje volta e meia se deleitam
em citar fora do contexto para,
diante da dificuldade de compreendê-lo, e fazendo apelo à
cumplicidade de um senso comum preconceituoso, ridicularizar seu hermetismo criptográfico.
É fácil não ver sentido em alguns trechos desse ensaio
quando tirados do contexto,
porque simplesmente não faz
sentido algum tirá-los do contexto. O texto de Hansen pode
por vezes não ser claro, mas é
brilhante.
O ensaísta quer combinar
Guimarães Rosa com Gilles
Deleuze. Tanto um como o outro são autores cujos estilos tão
díspares (um, transbordante; o
outro, fazendo uso de uma língua pobre para transmitir
idéias complexas) se prestam
com facilidade, pela força de
sua inovação e originalidade,
aos mimetismos.
Uma vez abertos os caminhos, nada mais fácil do que
cair num cacoete superficial de
Rosa -e escrever numa espécie de regionalismo maneirista
repleto de neologismos
"kitsch"-, assim como basta
repetir com alguma insistência
os conceitos inventados por
Deleuze para reduzi-los a clichês e palavras de ordem, o
oposto do que propunha o filósofo francês.
Hansen não faz mimetismo
desses autores mas os incorpora como instrumentos na sua
própria maneira de pensar,
uma forma apaixonada.
Seu texto pode não ser dos
mais simples e límpidos, mas
nas suas dobras e circunvoluções vai criando uma paisagem
de idéias a ser desbravada, como num jogo filosófico ou romance. Tenta fazer da crítica literária filosofia e ficção.
Faz uma teoria dos signos, de
inspiração deleuziana, uma
"lógica do sentido" aplicada a
Guimarães Rosa, na tentativa
de mostrar que a linguagem
em "Grande Sertão: Veredas"
não funciona como representação de um mundo prévio (a
realidade), mas como invenção, deslocamento e intervenção.
"Rosa tem a imaginação de
um homem de teatro que se recusasse a representar fatos, coisas, ações, objetos do movimento e que efetuasse o movimento mesmo, sempre aquém
ou além da representação, escorrendo além dos lados da
moldura, sem forma ou estilo
adequados, interpostos entre o
objeto designado e o movimento efetuado. (...) A linguagem de Rosa é operada pela diferença: reescreve a língua,
além e aquém da estória narrada; ficção da ficção, (...) exploração de um campo de falas
anônimas que, no efeito de
deslocamento, encenam o
inexpresso do sentido."
Em vários momentos, Hansen dialoga com os que viam
em Guimarães Rosa um escritor reacionário, adequado a
um tempo de autoritarismo
militar.
É manifesta a preocupação
do ensaísta de lançar os argumentos contra essa imagem
equivocada, hoje praticamente
inconcebível.
Hansen tenta mostrar como,
pela potência do paradoxo e do
"nonsense", e de um procedimento peculiar de deslocamento dos signos, o autor de
"Grande Sertão: Veredas" escapa ao círculo vicioso em que
sua obra poderia ser criticada
ainda como mera representação de uma realidade, para fazer uma revolução dos sentidos.
"O forte efeito literário, conseguido à custa de procedimentos como os citados (...) é
político: é que, pela primeira
vez, em "Grande Sertão: Veredas" falam as linguagens do
mato, sem mediação de narrador ilustrado que, na ficção
brasileira, sempre usurpou o
lugar de fala do sertanejo,
quando o constituiu como natureza, idílica ou decaída, como outro inalcançável ou a ser
convertido, ou, ainda, como
outro tristemente alienado nas
garras do capital, nas belas sínteses ideais de Alencar, na tolice naturalista, na força comovente e espantosa de Euclides,
na amargura pessimista deste
admirável Graciliano."
Ou seja: a narração em Guimarães Rosa "não se unifica
como fala do "sertão" nem como fala da "cidade", mas avança
dividida, fazendo-as entrechocar-se", desfazendo e refazendo a lógica da própria linguagem, expondo seus limites e
contradições.
Em Rosa, a língua deixa de
ser simples matéria-prima para
se tornar a própria matéria
(única e final) da ficção. O
"nonsense" mostra que, assim
como o diabo, a linguagem é o
que "se esvazia à medida que se
enche no nada". Porque é só
pelo paradoxo que ela pode dizer o indizível, que é o objetivo
de toda grande literatura.
Como o diabo (o "O" do título), ela é polissemia, paradoxo
e contradição, mas também recriação do mundo.
A linguagem é pacto com o
diabo, porque, como todo signo, designa pela ausência da
coisa uma coisa que ao mesmo
tempo ela reinventa pela imaginação.
Avaliação:
Livro: O "O" - A Ficção da Literatura
em "Grande Sertão: Veredas"
Autor: João Adolfo Hansen
Editora: Hedra (0/xx/11/867-8304)
Quanto: R$ 17 (198 págs.)
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