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"SER E TER"
Documentário francês idealiza a educação na França atual
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO
Quando "Ser e Ter" estreou
na França, no segundo semestre de 2002, virou uma febre
no país. Multidões acorreram aos
cinemas, muitas vezes aplaudindo no final da projeção.
Com o filme, a imprensa e a TV
francesas ganharam dois novos
heróis: o encantador menino Jojo,
de 4 anos, e o perseverante professor Georges Lopez, de 58. O primeiro era a "estrela" de um grupo
de alunos pobres e complicados
numa pequena escola da Província de Saint-Etienne-sur-Esson,
aos quais o segundo, com uma
dedicação exemplar, tentava ensinar as primeiras luzes.
Poderia ter sido o documentário mais enfadonho de todos os
tempos. Mas o carisma de Jojo e
Lopez, o cuidado e o carinho do
diretor na observação, a estratégia
algo invasiva da narrativa, o pequeno suspense do aprendizado
-isso cativou em "Ser e Ter" (os
dois primeiros verbos que se costuma aprender a conjugar).
Além disso, para a boa recepção
do filme contribuiu o estado emocional da França na época, após o
abalo político das eleições de
2002, quando o neofascista Jean-Marie Le Pen estivera perto de se
eleger presidente do país.
O documentário servia, sem
querer, como um antídoto à selvageria espiritual prenunciada no
avanço eleitoral da extrema direita. A precária escola provinciana e
a comunidade que a rodeia davam ao país inteiro uma lição sobre as velhas e boas qualidades da
vida republicana na França: a
igualdade, a fraternidade e a liberdade buscada por meio da educação e do trabalho.
As circunstâncias ajudaram a
aumentar o entusiasmo, que
eclipsou as lacunas de "Ser e Ter".
Pois há várias coisas sobre as
quais o documentário silencia.
Ao eleger uma escola de Província, cuja vida cotidiana dramatiza,
o filme praticamente se exila dos
problemas atuais do ensino francês (a assimilação dos muçulmanos, os cortes de orçamento, a
violência nas salas de aula, a crise
de autoridade do professor etc.).
Em sua lógica, os conflitos são
"interiores", como se a escola e a
sua região estivessem praticamente isoladas no plano temporal, social e político. E não é à toa
que há algo de passadista nos métodos do professor, e a nostalgia é
um dos sentimentos que o filme
tende a despertar (nostalgia da vida simples e direta, da escola antiga, dos ritmos sazonais, do calor
humano, do acolhimento etc.).
Uma tal idealização dificilmente
ficaria intacta em nosso tempo. E
o longa foi atingido no seu coração, com o processo movido por
Lopez, que reivindica 250 mil euros pelo uso de sua imagem no filme, visto por cerca de 2 milhões
de pessoas na França. As malícias
da história são incontáveis, ainda
mais na era do espetáculo.
Ser e Ter
Être et Avoir
Direção: Nicolas Philibert
Produção: França, 2002
Quando: a partir de amanhã nos
cinemas de São Paulo
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