São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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"SER E TER"

Documentário francês idealiza a educação na França atual

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

Quando "Ser e Ter" estreou na França, no segundo semestre de 2002, virou uma febre no país. Multidões acorreram aos cinemas, muitas vezes aplaudindo no final da projeção.
Com o filme, a imprensa e a TV francesas ganharam dois novos heróis: o encantador menino Jojo, de 4 anos, e o perseverante professor Georges Lopez, de 58. O primeiro era a "estrela" de um grupo de alunos pobres e complicados numa pequena escola da Província de Saint-Etienne-sur-Esson, aos quais o segundo, com uma dedicação exemplar, tentava ensinar as primeiras luzes.
Poderia ter sido o documentário mais enfadonho de todos os tempos. Mas o carisma de Jojo e Lopez, o cuidado e o carinho do diretor na observação, a estratégia algo invasiva da narrativa, o pequeno suspense do aprendizado -isso cativou em "Ser e Ter" (os dois primeiros verbos que se costuma aprender a conjugar).
Além disso, para a boa recepção do filme contribuiu o estado emocional da França na época, após o abalo político das eleições de 2002, quando o neofascista Jean-Marie Le Pen estivera perto de se eleger presidente do país.
O documentário servia, sem querer, como um antídoto à selvageria espiritual prenunciada no avanço eleitoral da extrema direita. A precária escola provinciana e a comunidade que a rodeia davam ao país inteiro uma lição sobre as velhas e boas qualidades da vida republicana na França: a igualdade, a fraternidade e a liberdade buscada por meio da educação e do trabalho.
As circunstâncias ajudaram a aumentar o entusiasmo, que eclipsou as lacunas de "Ser e Ter". Pois há várias coisas sobre as quais o documentário silencia.
Ao eleger uma escola de Província, cuja vida cotidiana dramatiza, o filme praticamente se exila dos problemas atuais do ensino francês (a assimilação dos muçulmanos, os cortes de orçamento, a violência nas salas de aula, a crise de autoridade do professor etc.).
Em sua lógica, os conflitos são "interiores", como se a escola e a sua região estivessem praticamente isoladas no plano temporal, social e político. E não é à toa que há algo de passadista nos métodos do professor, e a nostalgia é um dos sentimentos que o filme tende a despertar (nostalgia da vida simples e direta, da escola antiga, dos ritmos sazonais, do calor humano, do acolhimento etc.).
Uma tal idealização dificilmente ficaria intacta em nosso tempo. E o longa foi atingido no seu coração, com o processo movido por Lopez, que reivindica 250 mil euros pelo uso de sua imagem no filme, visto por cerca de 2 milhões de pessoas na França. As malícias da história são incontáveis, ainda mais na era do espetáculo.


Ser e Ter
Être et Avoir
   
Direção: Nicolas Philibert
Produção: França, 2002
Quando: a partir de amanhã nos cinemas de São Paulo



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