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FERREIRA GULLAR
A orelha de Van Gogh
Devorei "Van Gogh, Le Suicidé de la Société" com avidez, mas tive a má idéia de emprestá-lo
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A REVISTA do IAPC, que funcionava numa sala da rua Alcino
Guanabara, era o que se podia
chamar de um cabide de empregos.
Ali ganhavam, sem trabalhar, vários
escritores, entre os quais eu, o único
que dava expediente integral na Redação. Não é que houvesse muita
coisa a fazer. Eu é que, residindo não
num quarto, mas numa vaga, perto
da praça da Cruz Vermelha, não tinha onde escrever. Ali, na Redação,
dispunha de telefone, uma máquina
de escrever e silêncio para elaborar
meus poemas, além de textos em
prosa, tão estranhos que os guardo
até hoje sem publicar. Certa vez, interrompi a elaboração de um deles
para ir almoçar, deixando-o na máquina de escrever. Ao voltar, alguém
havia acrescentado a ele algumas
frases, tornando-o ainda mais extravagante. Aceitei a colaboração (que,
soube depois, era de Lúcio Cardoso)
e o continuei.
Além de Lúcio, também pertencia
à Redação da revista o contista Breno Accioly, que andava sempre de
chapéu e capa de chuva, chovesse ou
não, e entrou em conflito com Otto
Lara Resende, que, na época, dirigia
o suplemento literário "Letras & Artes". É que Breno o procurara levando-lhe vários contos para que os publicasse e, como Otto só publicou
um deles, tomou-o como inimigo e
passou a ameaçá-lo com um revólver. Ao assinar o livro de ponto, percebi que estava armado e ele, mastigando o charuto que sempre trazia
na boca, falou:
-Isso é para ensinar uma lição a
um cabra safado.
Breno era alagoano. Soube que,
dias depois, ao cruzar a avenida Rio
Branco, ao lado do Teatro Municipal, deparou com Otto, que vinha
em sentido contrário.
-Otto Lara Resende, verme da
terra!, gritou ele, sacando da arma.
Otto saiu correndo em disparada.
Dos escritores já famosos, o único
a vagabundear comigo era Lúcio
Cardoso, que se tornou meu amigo
ao me ver lendo "Notre-Dame-des-Fleurs", de Jean Genet. Como meu
salário de extra-numerário mensalista mal dava para pagar a vaga no
quarto e comprar livros, almoçava
no restaurante do SAPS (Serviço de
Alimentação Popular), que ficava no
subsolo da sede do IAPC, na rua México, 28. Lúcio passou a me acompanhar nesses almoços, se coincidia
chegar nessa hora para assinar o
ponto. O jantar é que era o problema, já que o SAPS fechava às 14 horas. As opções eram a sopa de entulho do restaurante Cayru, ali na rua
Senador Dantas, ou o prato feito na
Associação Cristã de Moços, isso
quando sobrava grana depois dos
cuba-libres que tomávamos no Vermelhinho, no final da tarde.
O Vermelhinho fervia de artistas e
intelectuais, que por ali passavam
após o expediente do dia. A maioria
tomava um chope e ia embora, mas o
nosso grupo, sem pai nem mãe, nem
família, esticava em direção à Lapa.
Eu, a última coisa que desejava era
voltar para o quarto que dividia com
dois irmãos do interior de Goiás.
Passavam a noite inteira a conversar, a lembrar coisas de sua terra, especialmente as namoradas que tiveram. Eu, que já desistira de ler, metia-me sob o lençol e tapava os ouvidos. Quando finalmente dormiam, a
coisa piorava porque os dois roncavam numa altura que fazia estremecer as paredes do quarto. Foi por isso que aceitei a proposta de Bastos
para ir morar com ele e o Carlinhos
Oliveira, na pensão de dona Hortência, na rua Buarque de Macedo, no
Catete. Se não era nenhuma maravilha, pelo menos ali ninguém roncava; só o colchão da cama é que, de tão
velho, parecia de pedra; era o mesmo que dormir em cima de uma mesa de necrotério.
Naquela época, descobrira Antonin Artaud, num exemplar da revista "Fontaine", que lia na Biblioteca
Nacional. Passei a copiar-lhe os poemas a mão e depois datilografá-los.
Punha-lhes uma capa vermelha, de
cartolina, e dava-os aos amigos, em
edições de três a cinco exemplares,
devidamente numerados e assinados pelo datilógrafo.
Por acaso, encontrei, no fundo de
uma prateleira da Livraria Francesa,
um exemplar do texto de Artaud
"Van Gogh, Le Suicidé de la Société".
Devorei-o com avidez, mas tive a má
idéia de emprestá-lo a Oliveira Bastos, que deu fim nele. Soube depois
que o havia presenteado a Hélio Pellegrino, que me deu a notícia tecendo elogios à generosidade de Bastos.
Bem, esta foi apenas uma das numerosas raridades que tive a burrice de
emprestar a pessoas generosas (com
os outros). Apesar disso, mantinha-me otimista e dizia aos amigos -admiradores, como eu, não só de Artaud e Van Gogh, mas também de
outros malditos, como Rimbaud e
Lautréamont-: "Não pensem que
vou cortar a minha orelha". E mantive a palavra.
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