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CRÍTICA
Falta paixão a Piñeyro para (re)contar história
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A saga do regime militar argentino começou, ao menos
para uso internacional, com "A
História Oficial" (1985), filme
meio acadêmico que nos apresentava à barbárie dos militares que
tomaram o poder em 1976.
O título tinha um aspecto irônico, na medida em que o filme nos
contava justamente a história não
oficial. Como, no entanto, o governo militar havia caído, ele dava
início a uma nova visão oficial dos
acontecimentos, aquela que vigora até hoje.
"Kamchatka" faz parte dessa saga, e talvez anuncie sua decadência -esse momento em que as
sagas perdem seu viço- a partir
da experiência de um menino,
Harry, que acompanha os pais em
fuga, a partir do momento em que
se instala a ditadura. Trata-se de
deixar casa, escola, amigos, brinquedos, se instalar em um local
estranho, perscrutar o rosto dos
pais -que fazem o possível para
tranquilizar Harry e o irmão menor-, se adaptar, enfim, às mudanças que avassalam sua vida.
Talvez por isso Harry se encante
com a biografia de Houdini que
encontra na nova casa e lê com
paixão. Quando fala a alguém de
Houdini, aliás, o comentário inevitável é: "Ah, Houdini, o ilusionista". E a resposta: "Ilusionista,
não; escapista".
Escapista querendo dizer aqui
aquele que escapa, que consegue
sobreviver às situações mais ingratas graças a uma férrea disciplina física e mental. Harry identifica-se a Houdini sem saber exatamente por quê, mas já adivinhando que sobreviver será parte essencial da vida (não é inconfidência revelar que os pais desaparecerão a certa altura: isso é dito pelo
garoto no início do filme).
Não há nada errado com essa
ficção. A não ser que Marcelo Piñeyro, diretor desse filme, parece
um pouco enfastiado, seja da ditadura, seja da ditadura cinematográfica que parece ter se instalado
entre nossos vizinhos, graças à
qual Ricardo Darín tornou-se figura obrigatória dos filmes argentinos (aqui ele faz o pai).
O certo é que, embora Piñeyro
seja co-roteirista de "Kamchatka", não consegue envolver o espectador com a intensidade que o
fez no recente "Plata Quemada".
E não faltam no roteiro sugestões
interessantes, como a relação dos
meninos com os seriados de TV,
desenvolvida no início do filme.
Ela é bem mais forte, de resto,
que a ligação de Harry com o jogo
"War", da qual vem o estranho título do filme (Kamchatka é um
local tão distante quanto apropriado para um jogador em inferioridade resistir; é também o signo dos ensinamentos que o pai
pôde transmitir ao filho).
Não é o caso de dizer, claro, que
Piñeyro filma "errado" ou "mal".
Apenas parece lhe faltar a paixão
suficiente para contar, ainda uma
vez, outra história dessa história
infame que foi a ditadura argentina. Talvez não seja ainda o momento, mas já começa a parecer
mais provocante a hipótese de saber o que andava na cabeça desses
militares que são, hoje, os vencidos da história.
Kamchatka
Idem
Produção: Argentina/Espanha, 2002
Direção: Marcelo Piñeyro
Com: Ricardo Darín, Cecilia Roth
Quando: a partir de hoje nos cines
Cineclube DirecTV, Frei Caneca Unibanco
Arteplex, Lumière e Villa-Lobos
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