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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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CRÍTICA

Falta paixão a Piñeyro para (re)contar história

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A saga do regime militar argentino começou, ao menos para uso internacional, com "A História Oficial" (1985), filme meio acadêmico que nos apresentava à barbárie dos militares que tomaram o poder em 1976.
O título tinha um aspecto irônico, na medida em que o filme nos contava justamente a história não oficial. Como, no entanto, o governo militar havia caído, ele dava início a uma nova visão oficial dos acontecimentos, aquela que vigora até hoje.
"Kamchatka" faz parte dessa saga, e talvez anuncie sua decadência -esse momento em que as sagas perdem seu viço- a partir da experiência de um menino, Harry, que acompanha os pais em fuga, a partir do momento em que se instala a ditadura. Trata-se de deixar casa, escola, amigos, brinquedos, se instalar em um local estranho, perscrutar o rosto dos pais -que fazem o possível para tranquilizar Harry e o irmão menor-, se adaptar, enfim, às mudanças que avassalam sua vida.
Talvez por isso Harry se encante com a biografia de Houdini que encontra na nova casa e lê com paixão. Quando fala a alguém de Houdini, aliás, o comentário inevitável é: "Ah, Houdini, o ilusionista". E a resposta: "Ilusionista, não; escapista".
Escapista querendo dizer aqui aquele que escapa, que consegue sobreviver às situações mais ingratas graças a uma férrea disciplina física e mental. Harry identifica-se a Houdini sem saber exatamente por quê, mas já adivinhando que sobreviver será parte essencial da vida (não é inconfidência revelar que os pais desaparecerão a certa altura: isso é dito pelo garoto no início do filme).
Não há nada errado com essa ficção. A não ser que Marcelo Piñeyro, diretor desse filme, parece um pouco enfastiado, seja da ditadura, seja da ditadura cinematográfica que parece ter se instalado entre nossos vizinhos, graças à qual Ricardo Darín tornou-se figura obrigatória dos filmes argentinos (aqui ele faz o pai).
O certo é que, embora Piñeyro seja co-roteirista de "Kamchatka", não consegue envolver o espectador com a intensidade que o fez no recente "Plata Quemada". E não faltam no roteiro sugestões interessantes, como a relação dos meninos com os seriados de TV, desenvolvida no início do filme.
Ela é bem mais forte, de resto, que a ligação de Harry com o jogo "War", da qual vem o estranho título do filme (Kamchatka é um local tão distante quanto apropriado para um jogador em inferioridade resistir; é também o signo dos ensinamentos que o pai pôde transmitir ao filho).
Não é o caso de dizer, claro, que Piñeyro filma "errado" ou "mal". Apenas parece lhe faltar a paixão suficiente para contar, ainda uma vez, outra história dessa história infame que foi a ditadura argentina. Talvez não seja ainda o momento, mas já começa a parecer mais provocante a hipótese de saber o que andava na cabeça desses militares que são, hoje, os vencidos da história.


Kamchatka
Idem
  
Produção: Argentina/Espanha, 2002
Direção: Marcelo Piñeyro
Com: Ricardo Darín, Cecilia Roth
Quando: a partir de hoje nos cines Cineclube DirecTV, Frei Caneca Unibanco Arteplex, Lumière e Villa-Lobos



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