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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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GASTRONOMIA

Banquete de Deus

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Missa das seis. A fila da comunhão é grande, o padre entrega o corpo de Deus nas mãos do comungante. É uma hora íntima, uns saem rindo de felicidade, outros curvos pelo peso dela.
Há pequenos problemas. Nos colégios de freiras e de padres se ensinava que, mordida a hóstia, o sangue de Cristo jorraria, então tem sempre gente com cuidados, pois muitas vezes o pão santo gruda no céu da boca, é preciso soltá-lo devagarinho, com a ponta da língua.
Meu amigo brincava de missa. Aos seis anos, como não sabia latim, na hora da consagração ele substituía as palavras por: "Te como, te bebo, te papo", bem baixinho, murmurando, tal qual.
Enquanto cada um se resolve, naquela proximidade úmida com Deus, de união, de banquete, o padre arruma a mesa, guarda o que restou da festa, dobra os paninhos, espanta as migalhas com cuidados de dona-de-casa, num rito finalíssimo de já-comemos-e bebemos, cada um que pegue a estrada.
Lembrei disso tudo porque peguei uma revista dessas modernas, a "Colors", número 54, que fala sobre hóstias nas suas "páginas amarelas", de serviços (que é cor-de-rosa)! Espanto-me por ter passado uma vida sem reparar na substância da hóstia, na sua aparência, no gosto. Na sua moda!
A hóstia tem moda. Hoje são minimalistas, vendem mais as de uma cruz; as de cruz e cordeirinho estão em baixa, cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.
Penso muito em particular se seria possível sussurrar ao padre na hora santa que queria uma hóstia para viagem. E a observaria em casa, com especial atenção, mas suponho que não, só contrabandeada, de algum modo.
Tem tanta coisa de hóstia que a gente não imagina. Sabe que padre diabético e com intolerância a glúten tem hóstia especial? E sabe que, em Montserrat, o mosteiro catalão, a hóstia é integral, meio marronzinha? Num livro do italiano Camporesi, ele conta que um bolor na hóstia dava baratos alucinógenos incríveis! É assim, o mundo mundaniza o místico, que continua místico assim mesmo.
E não é fácil como pode parecer a feitura de uma hóstia. De pura farinha de trigo e água, e tem que ter uma proporção perfeita de água para que não fique muito seca e se quebre, nem fique muito úmida e mofe.
Imaginem que até uma possibilidade turística há nas hóstias modernas, e não é heresia nenhuma, pois a hóstia, antes de ser consagrada, é pão, como qualquer outro pão. Pois nos convidam a comprar as hóstias no convento de S. Maria Madre della Chiesa e di S. Benedetto, na cidade de San Giuliano, Terme. O convento abriga a fábrica Pane e Vita, onde três freiras produzem 3 milhões de hóstias por mês.
Você assiste à fabricação, pode se hospedar num dos quartos e passear a pé ou de bicicleta pela Toscana. Sem contar que a biblioteca tem 10 mil livros interessantes. O site está em construção, mas dá para ver a beleza do lu- gar.O inglês está em construção, entre no italiano. Ou é o contrário (www.geocities.com/benedettine-pisa)?
E é tão grande a sede de santidade que, em novembro de 2002, em Bangalore, na Índia, uma senhora, Sheela, voltava da igreja e, ao chegar em casa, começou a fazer chapatis para os filhos, que é aquele pão chato, indiano, que se pode fazer rapidamente na frigideira. Bom, misturou farinha e água, achatou como uma pequena pizza ou uma grande hóstia, uma hóstia do Terceiro Mundo. As crianças comeram como sempre e restou um. Não é que Sheela observou aquele rejeitado chapati e percebeu que tinha marcado nele o rosto de Jesus? Correu para o padre, que confirmou. No dia seguinte, o chapati saiu com o rosto de Nossa Senhora.
Agora 20 mil fiéis por dia passam pelo Centro de Renovação do Retiro Espiritual para homenagear o santo chapati. E, antes que ele acabe, como sói acontecer com tudo o que é humano, corram ao site do chapati santo, vocês verão Sheela e a família e a frigideira com o pão manchado de escuro com a face do Salvador.
E, se quiser aproveitar ao máximo essa experiência do pão (o kitsch dos sites religiosos pode até assustar, e site indiano e católico... dá para imaginar!), corte os excessos pondo um CD como "Pange Língua", com letra de são Tomás de Aquino! Canta minha língua, canta o corpo , a carne, o sangue...

ninahort@uol.com.br


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