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CONTARDO CALLIGARIS
No Museu de Bagdá com Ali Ismail
O Iraque estende-se sobre
as terras da antiga Mesopotâmia. A 370 quilômetros ao sul
de Bagdá, situam-se as ruínas da
cidade de Ur, velhas de 4.000
anos. É provável que, na Mesopotâmia, os homens tenham pela
primeira vez inventado a escrita,
instituído leis, observado as estrelas e mesmo criado a bateria elétrica bem antes de Alessandro
Volta. "Ur" é, em alemão, o prefixo que designa o que é originário
na história.
Quando, na invasão de Bagdá,
foi saqueado o Museu Nacional
do Iraque, a dor e a consternação
foram brutais pelo mundo afora:
perdeu-se uma herança comum
da humanidade. Mas o que é, para nós, uma herança?
Tudo leva a crer que, em sua
maioria, os saqueadores agissem
por conta de terceiros capazes de
comercializar o butim. Suspeita-se que algumas peças já tenham
sido leiloadas no site de E-bay.
Outras devem estar nos cofres de
mercadores europeus, americanos e asiáticos, à espera de que o
mundo esqueça e a venda se torne
menos arriscada.
Com isso, o saque do Museu de
Bagdá parecia encenar nossa relação banal com o passado. Eis
como.
Os museus são uma invenção
moderna; nasceram durante a
Revolução Francesa. Os parisienses arrebentavam as casas dos nobres e se serviam de bens, mobiliário e objetos. O quebra-quebra
era um jeito de decretar que acabara o tempo dos privilégios. A
Assembléia Nacional debateu durante meses para chegar à conclusão de que os restos do antigo regime deviam ser considerados patrimônio da nação. Seriam, portanto, reunidos e instalados em
museus que todos visitariam, preservando agradavelmente a lembrança dos tempos anteriores.
A questão em debate era a seguinte: será que fazia sentido preservar o passado, uma vez que estava começando uma nova era
em que os sujeitos não seriam
mais julgados por sua origem,
mas por suas capacidades e potencialidades? Não seria lógico
destruir os vestígios de épocas injustas para começar do zero? Prevaleceu o partido segundo o qual
era bom conservar os restos do
passado iníquo e transformá-los
em memórias coletivas.
Dessa escolha nasceram os museus e, logo depois, a decisão de
preservar os monumentos históricos. Na mesma época, na Europa
inteira, vingou o interesse pela
história.
A justificativa inicial era: lembre-se para não repetir. Não deu
muito certo, pois nunca paramos
de repetir o pior. Na verdade, suspeito que nosso gosto pelos resíduos do passado não seja (nunca
tenha sido) pedagógico. Por que
nos importa a história? Por que
deambulamos pelos museus?
Acreditamos que os homens devam afirmar-se segundo suas habilidades. Não queremos que o
passado decida nosso destino: o
que nos importa, em princípio, é o
futuro. "Não me fale de suas gestas de ontem, diga-me o que sabe
fazer." Se inventamos a arqueologia, a história, o museu, a restauração e a conservação das antiguidades, não é para aprender
uma lição. A razão dessa nossa
paixão é o caráter incompleto da
revolução moderna: o futuro é
um terreno demasiado inquietante e incerto para aceitarmos
que só ele nos defina, portanto o
passado assombra nossos dias.
Não conseguimos esquecer: proclamamos a liberdade dos espíritos, mas cultivamos antigos preconceitos de raça, cultura e classe.
Ou então nos dizemos autônomos, mas explicamos nossos atos
pelos eventos de nossa infância ou
pelo legado de nossos pais.
Em suma, passamos as tardes
de domingo no mercadinho embaixo do Masp, mas inventamos
a expressão "objetos de museu"
para designar bibelôs sem relevância para o nosso presente. E
concebemos o valor simbólico do
passado sob a única forma que
parecemos entender: como valor
venal.
Sinistra astúcia da história em
Bagdá: a herança da civilização
mesopotâmica foi transformada
em mercadoria tanto pela ganância dos que encomendaram o saque como pela negligência dos
americanos (para quem proteger
o museu não foi prioridade nenhuma). "Sucesso" da modernidade: o passado tornou-se um
perfeito instrumento do futuro,
pois serviu apenas para que alguns fizessem fortuna.
Mas não é o caso de deixar-se
levar pela nostalgia dos tempos
em que o passado contava. Considere uma outra imagem da guerra: o pequeno Ali Ismail Abbas, os
braços amputados, o corpo queimado, os olhos arregalados por
uma dor sem fundo. Você sacrificaria os artefatos de todos os museus do mundo para que Ali Ismail ainda estivesse brincando
alegre com seus amigos? Claro
que sim.
Ora, cuidado, essa resposta não
é "natural". Numa cultura diferente da nossa, os restos do passado poderiam parecer bem mais
importantes do que uma vida.
Talvez um homem do antigo regime nos dissesse que, sem presença
do passado, não haveria sociedade nem sujeitos. Talvez, para ele,
a promessa de futuro contida no
sorriso de um menino valesse menos do que os artefatos que sustentam a memória de um povo.
Por uma vez, podemos simpatizar com nosso individualismo:
afinal, escolhemos Ali Ismail porque acreditamos na vida do indivíduo acima de qualquer necessidade coletiva, acima também dos
ornamentos e dos restos do passado.
ccalligari@uol.com.br
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