São Paulo, sábado, 01 de maio de 2010

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Crítica/ "A Infância do Mago"

Hermann Hesse mistura fábula e autobiografia com tom piegas

Vencedor do Nobel questiona o mundinho burguês e faz caminho fácil às Índias

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não parece, mas "A Infância do Mago", de Hermann Hesse, é obra de um autor de 45 anos.
Aborda o paraíso da infância e manifesta o desejo menino e nada original do autor de se tornar mágico.
Há incursões pelo fantástico, como a companhia orientadora do "homenzinho" inexistente que num adulto seria caracterizada como psicótica. O narrador perde sua inocência ao surpreender uma vizinha nua.
O livro é cheio de floreios ingênuos. A infância parece uma idade maravilhosa, distante da maldade de um filme como "A Fita Branca". Refere "a lendária sabedoria das crianças" e não cansa de chicotear a realidade, que não passa de uma convenção adulta ("quase todos os adultos me pareciam esquisitos e ridículos"), tolhe a fantasia (ele proclama com horror ter virado "comilão" na vida adulta) e é a "falsa canção da vida" ensinada pelos "rudimentos da mentira e da dissimulação" dos professores. Repetindo o que acontece com todo mundo como se fosse uma descoberta, Hesse diz: "Aprendi antes da escola o que há de mais essencial na vida" e jamais atinge a profundidade de Proust ou de Borges -a evocação de um livro lembra o argentino diante de "As Mil e Uma Noites"- na análise da infância. Sua bondade infinita, sua ingenuidade às vezes tocante e desprovida de cinismo lembram obras como a grande novela "Djamila", de Aimatov.
Mas a ingenuidade também soa piegas: "Ainda hoje sei de cor muitas palavras latinas, versos e provérbios bonitos e espirituosos". Ou quando a vizinha diz: "Você é o menino mais sabido que eu já vi, você é ótimo". Em seus momentos mais fracos -há até uma estátua de Shiva decorando o ambiente-, a obra faz o caminho mais fácil às Índias. Não deixa de ser, no entanto, um curioso depoimento sobre o autor, que jamais largaria de todo o ingrediente fabular.
No fulcro da narrativa, Hesse questiona o mundinho burguês e se revolta suspirosamente contra a ordem. Defensor da paz do budismo indiano, cresceu cercado de religião por todos os lados, da Bíblia a Lao Tse. Autor do idolatrado "O Lobo da Estepe" (embora devesse ser mais conhecido pela obra-prima "O Jogo das Contas de Vidro"), escreveu "A Infância do Mago" em 1922, o mesmo ano de "Sidarta".
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1946, era filho de um missionário alemão e neto de um indólogo pelo lado materno, um sábio barbudo que ocupa posição central na obra e lhe abre as porteiras do mundo exótico.
"A Infância do Mago" é uma fábula autobiográfica, que no original alemão vem com ilustrações de Peter Weiss, nem de longe a parte menos interessante do livro. A mistura de dois gêneros tão pretensamente opostos como estes tem a virtude de desmascarar o quanto há de fábula em toda e qualquer autobiografia.


MARCELO BACKES é tradutor e escritor, autor de "Estilhaços" e "maisquememória"

A INFÂNCIA DO MAGO
Autor: Hermann Hesse
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 19 (56 págs.)
Avaliação: regular


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