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O brasileiro tem a funda nostalgia do caos
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Graças a Deus, saiu um novo
livro do Nelson Rodrigues. Parece mentira. Eu estava pensando em ligar para ele no
meu telefone astral, de ebonite,
preto, postado em cima de
uma mesinha "chippendale"
da rua do Catete, perto da folhinha na parede com o
pôr-do-sol na roça. Não precisou, pois abri o livrinho da
Companhia das Letras, "Flor
de Obsessão" com as mil frases
do Nelson e comecei logo a
conversar com ele.
- Mas, Nelson, eu ia te telefonar para saber o que vai
acontecer ao Brasil. Você aí de
cima, vê melhor... O negócio
está desesperante. A gente está
dividido entre a África e o Canadá, nada anda, o Congresso
simplesmente se recusa a deixar o país se governar.
- Olha, Jabor, inventaram
esse negócio de que o brasileiro
é um bom. Mentira. Está se deteriorando a bondade brasileira. De 15 em 15 minutos, aumenta o desgaste de nossa delicadeza. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro.
Que país formidável seria o
Brasil, se o brasileiro gostasse
do brasileiro.
- Mas, não é nem maldade,
Nelson; é burrice mesmo. Estes
políticos podiam querer um
outro patamar, subir de nível.
Iam até lucrar mais, poderiam
até fazer negócios mais vultosos, até os escusos... se o país
subisse de nível.
- Você é uma cambaxirra,
meu caro. Saiba que a burrice
é anterior ao dilúvio. Antigamente, o burro se sabia burro.
Ficava calado, respingado pelos perdigotos dos gênios. O
burro babava na gravata. Hoje, não. Os burros estão subindo em caixotes de querosene
Jacaré e juntam multidões em
volta deles. O gênio rosna de
impotência e frustração. Já o
imbecil, o cretino arde como
um sol desvairado. A burrice é
a pior forma de loucura.
- Mas, Nelson, acho que estou precisando de férias... Se eu
pudesse, ia te visitar aí na nuvem da Aldeia Campista... Eu
estou me sentindo uma besta...
Vivo me esgoelando na televisão, falando do óbvio ululante
e ninguém se modifica...
- Eu sei...tenho visto o
"Jornal Nacional". Aqui tem
parabólica.
- Pois é. Eu falo, falo e ninguém liga. Eu tinha a fantasia
de que se eu dissesse uma verdade na TV o canalha ia se tocar: "Ihh...ele tem razão!...Eu
sou um canalha!".
- Ninguém sai na rua gritando e batendo no peito. Eu
sou um canalha!...
- Me diz... Me diz, Nelson...
(minha voz tinha arranques de
cachorro atropelado) Eu sou
ou não sou uma besta?
(Elegantemente, o Nelson
evitou uma resposta)
- Só idiota completo verá a
Deus... E você, pelo menos, se
horroriza ainda... O espanto é
o que nos salva... Aquele que se
horroriza ainda pode esperar a
ressurreição...
- Só que o horror é tanto
que ninguém no Brasil liga
mais para o que se faz. Se o sujeito resolver andar de quatro
montado por um Dragão da
Independência, de penacho e
esporas, ninguém se espanta
mais. O FHC, por exemplo, ele
pensa que é o Barão do Rio
Branco. Só que o povo não sabe nada. Ele tinha de explicar
ao povo o que está querendo
fazer, pois o povo baba literalmente na gravata. O FHC é um
sociólogo e o sociólogo não se
espanta; se lhe servirem ensopadinho de ratazana, ele acha
natural. Se ele não gritar, não
vai ter reforma nenhuma. O
subdesenvolvimento não se
improvisa; é obra de séculos. E
ele quer mexer nesse formigueiro como se cultivasse uma
orquídea de luxo.
- Vou te dizer uma frase sinistra, mas tenho olhado aqui
de cima e acho que o brasileiro
ainda não amadureceu para a
tragédia... Só as elites que sofreram tem dignidade dos trágicos. Nossas elites ainda têm o
fascínio do pastelão, das tortas
na cara. As elites brasileiras
não conhecem a catástrofe.
Diante do terrível, os políticos
vivem num otimismo obtuso,
pétreo, córneo. Foi assim em
Hiroshima, na manhã dominical da bomba. Nenhum presságio, nenhuma tensão, nada
que turvasse a ternura da cidade. Senhoras, crianças e babás
tinham a mesma inconsciência
de um bodinho de charrete. De,
repente, vem o clarão hediondo. Quando voltar a inflação,
vai ser assim, de repente. Ai dirão: "Que horror!". Mas, vai
ser tarde demais. Nossas elites
políticas têm a inconsciência
de um bodinho de charrete.
- Mas o povo...
- Sinto te dizer... Mas o povo é uma besta. O Brasil é muito impopular no Brasil. O Brasil precisa ser feito e nos não o
fazemos. Somos muito volúveis, como uma meretriz de
melodrama, falamos, falamos
e nada fazemos. Essa tal de
"globalização". Falam nela,
mas todos estão agarrados nas
tetas da vaca morta, do Estado
fracassado. Passa uma palavra
nova e o Brasil vai atrás, feito
os vira-latas atrás do batalhão. O brasileiro tem alma de
cachorro de batalhão.
- Mas o que dói, Nelson, é
que se este Plano Real aguentasse, este país ia ser o campeão do mundo....
- Brasileiro não está preparado para ser o maior do mundo em nada. Ser o maior do
mundo em qualquer coisa,
mesmo em cuspe a distância,
implica numa grave e sufocante responsabilidade. E o brasileiro é um feriado. Vai dar um
passeio em Brasília. Lá todos
são inocentes e todos são cúmplices. Lá tem cada cafajeste
dionisíaco... Cafajestes de
plantar bananeira até em velório... Estes cafajestes estão
agarrados no passado. E o pior
é que, no Brasil, o passado
sempre tem razão.
- Mas, Nelson, o problema
da gente não é nem o passado,
nem os passadistas. O problema são os "progressistas".
Eles estão todos torcendo pela
derrota do Brasil, de radinho
de pilha na mão. Por que? Os
jornalistas ditos "progressistas" clamam pelo fracasso,
mais do que os córneos reacionários...
- Eles não têm alma, Jabor,
e sem alma não se chupa nem
um chicabom. E eles não
aguentam viver sem o velório
de uma idéia, de uma esperança... Já reparou como os progressistas só celebram derrotas? E todos querem ver o Plano Real enterrado como sapo
de macumba. Já pensou se o
negócio melhora mesmo? Onde
eles vão arranjar emprego para o rancor? Ah... Os nossos libertários... Bem os conheço...
Querem a própria liberdade...
Que se dane a liberdade
alheia. Perguntaram a um
amigo meu: Você é de direita
ou de esquerda? Ele calcou a
brasa do cigarro no cinzeiro e
respondeu: "Não sou canalha..." Ninguém entendeu.
Houve um suspense irrespirável. Mas eu entendi. Ele quis
dizer: "Só o canalha precisa
de uma ideologia que o justifique e absolva."
- Estamos perdidos, Nelson?
- Talvez, talvez... Eis o nosso dilema: o Brasil ou o caos. O
diabo é que temos a vocação, a
nostalgia do caos. É só...
Fechei o livro e a voz sumiu.
Ando nervoso. Qualquer hora,
vou chorar lágrimas de esguicho na TV, vou enlouquecer no
ar, dando gargalhadas de bruxa de teatro infantil, vou repetir o óbvio, de fronte alta como
um Byron de 17 anos, porque
eu também, modéstia a parte,
sou uma "flor de obsessão".
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