São Paulo, terça, 1 de julho de 1997.



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O brasileiro tem a funda nostalgia do caos

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Graças a Deus, saiu um novo livro do Nelson Rodrigues. Parece mentira. Eu estava pensando em ligar para ele no meu telefone astral, de ebonite, preto, postado em cima de uma mesinha "chippendale" da rua do Catete, perto da folhinha na parede com o pôr-do-sol na roça. Não precisou, pois abri o livrinho da Companhia das Letras, "Flor de Obsessão" com as mil frases do Nelson e comecei logo a conversar com ele.
- Mas, Nelson, eu ia te telefonar para saber o que vai acontecer ao Brasil. Você aí de cima, vê melhor... O negócio está desesperante. A gente está dividido entre a África e o Canadá, nada anda, o Congresso simplesmente se recusa a deixar o país se governar.
- Olha, Jabor, inventaram esse negócio de que o brasileiro é um bom. Mentira. Está se deteriorando a bondade brasileira. De 15 em 15 minutos, aumenta o desgaste de nossa delicadeza. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que país formidável seria o Brasil, se o brasileiro gostasse do brasileiro.
- Mas, não é nem maldade, Nelson; é burrice mesmo. Estes políticos podiam querer um outro patamar, subir de nível. Iam até lucrar mais, poderiam até fazer negócios mais vultosos, até os escusos... se o país subisse de nível.
- Você é uma cambaxirra, meu caro. Saiba que a burrice é anterior ao dilúvio. Antigamente, o burro se sabia burro. Ficava calado, respingado pelos perdigotos dos gênios. O burro babava na gravata. Hoje, não. Os burros estão subindo em caixotes de querosene Jacaré e juntam multidões em volta deles. O gênio rosna de impotência e frustração. Já o imbecil, o cretino arde como um sol desvairado. A burrice é a pior forma de loucura.
- Mas, Nelson, acho que estou precisando de férias... Se eu pudesse, ia te visitar aí na nuvem da Aldeia Campista... Eu estou me sentindo uma besta... Vivo me esgoelando na televisão, falando do óbvio ululante e ninguém se modifica...
- Eu sei...tenho visto o "Jornal Nacional". Aqui tem parabólica.
- Pois é. Eu falo, falo e ninguém liga. Eu tinha a fantasia de que se eu dissesse uma verdade na TV o canalha ia se tocar: "Ihh...ele tem razão!...Eu sou um canalha!".
- Ninguém sai na rua gritando e batendo no peito. Eu sou um canalha!...
- Me diz... Me diz, Nelson... (minha voz tinha arranques de cachorro atropelado) Eu sou ou não sou uma besta?
(Elegantemente, o Nelson evitou uma resposta)
- Só idiota completo verá a Deus... E você, pelo menos, se horroriza ainda... O espanto é o que nos salva... Aquele que se horroriza ainda pode esperar a ressurreição...
- Só que o horror é tanto que ninguém no Brasil liga mais para o que se faz. Se o sujeito resolver andar de quatro montado por um Dragão da Independência, de penacho e esporas, ninguém se espanta mais. O FHC, por exemplo, ele pensa que é o Barão do Rio Branco. Só que o povo não sabe nada. Ele tinha de explicar ao povo o que está querendo fazer, pois o povo baba literalmente na gravata. O FHC é um sociólogo e o sociólogo não se espanta; se lhe servirem ensopadinho de ratazana, ele acha natural. Se ele não gritar, não vai ter reforma nenhuma. O subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos. E ele quer mexer nesse formigueiro como se cultivasse uma orquídea de luxo.
- Vou te dizer uma frase sinistra, mas tenho olhado aqui de cima e acho que o brasileiro ainda não amadureceu para a tragédia... Só as elites que sofreram tem dignidade dos trágicos. Nossas elites ainda têm o fascínio do pastelão, das tortas na cara. As elites brasileiras não conhecem a catástrofe. Diante do terrível, os políticos vivem num otimismo obtuso, pétreo, córneo. Foi assim em Hiroshima, na manhã dominical da bomba. Nenhum presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade. Senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência de um bodinho de charrete. De, repente, vem o clarão hediondo. Quando voltar a inflação, vai ser assim, de repente. Ai dirão: "Que horror!". Mas, vai ser tarde demais. Nossas elites políticas têm a inconsciência de um bodinho de charrete.
- Mas o povo...
- Sinto te dizer... Mas o povo é uma besta. O Brasil é muito impopular no Brasil. O Brasil precisa ser feito e nos não o fazemos. Somos muito volúveis, como uma meretriz de melodrama, falamos, falamos e nada fazemos. Essa tal de "globalização". Falam nela, mas todos estão agarrados nas tetas da vaca morta, do Estado fracassado. Passa uma palavra nova e o Brasil vai atrás, feito os vira-latas atrás do batalhão. O brasileiro tem alma de cachorro de batalhão.
- Mas o que dói, Nelson, é que se este Plano Real aguentasse, este país ia ser o campeão do mundo....
- Brasileiro não está preparado para ser o maior do mundo em nada. Ser o maior do mundo em qualquer coisa, mesmo em cuspe a distância, implica numa grave e sufocante responsabilidade. E o brasileiro é um feriado. Vai dar um passeio em Brasília. Lá todos são inocentes e todos são cúmplices. Lá tem cada cafajeste dionisíaco... Cafajestes de plantar bananeira até em velório... Estes cafajestes estão agarrados no passado. E o pior é que, no Brasil, o passado sempre tem razão.
- Mas, Nelson, o problema da gente não é nem o passado, nem os passadistas. O problema são os "progressistas". Eles estão todos torcendo pela derrota do Brasil, de radinho de pilha na mão. Por que? Os jornalistas ditos "progressistas" clamam pelo fracasso, mais do que os córneos reacionários...
- Eles não têm alma, Jabor, e sem alma não se chupa nem um chicabom. E eles não aguentam viver sem o velório de uma idéia, de uma esperança... Já reparou como os progressistas só celebram derrotas? E todos querem ver o Plano Real enterrado como sapo de macumba. Já pensou se o negócio melhora mesmo? Onde eles vão arranjar emprego para o rancor? Ah... Os nossos libertários... Bem os conheço... Querem a própria liberdade... Que se dane a liberdade alheia. Perguntaram a um amigo meu: Você é de direita ou de esquerda? Ele calcou a brasa do cigarro no cinzeiro e respondeu: "Não sou canalha..." Ninguém entendeu. Houve um suspense irrespirável. Mas eu entendi. Ele quis dizer: "Só o canalha precisa de uma ideologia que o justifique e absolva."
- Estamos perdidos, Nelson?
- Talvez, talvez... Eis o nosso dilema: o Brasil ou o caos. O diabo é que temos a vocação, a nostalgia do caos. É só...
Fechei o livro e a voz sumiu. Ando nervoso. Qualquer hora, vou chorar lágrimas de esguicho na TV, vou enlouquecer no ar, dando gargalhadas de bruxa de teatro infantil, vou repetir o óbvio, de fronte alta como um Byron de 17 anos, porque eu também, modéstia a parte, sou uma "flor de obsessão".



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