São Paulo, sábado, 01 de julho de 2000


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"CADERNO DE SONHOS"
Ana Miranda tece os limites entre o sonhar e o fazer ficção

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Dormir, talvez sonhar, diz Hamlet em seu solilóquio e, ao fazê-lo, resume milênios de ansiedades e expectativas. Talvez sonhar -e daí? O que nos dizem os sonhos? Pergunta aflitiva.
Não é de admirar o poder atribuído àqueles que, de algum modo, pretendem conhecer o significado oculto do sonhar; na Bíblia, a sorte de José muda drasticamente quando ele interpreta o sonho do Faraó como uma antecipação do futuro. A Antiguidade acreditava firmemente no sonho como revelação, como premonição; tal crença está presente nos poemas de Homero. Para os gregos, os sonhos eram mensagens dos deuses. Uma pessoa doente iria ao templo de Apolo ou de Esculápio, cumpriria certos rituais, deitaria para dormir -e em sonhos lhe seria revelada a cura da doença.
Com a modernidade, essas coisas passaram a ser rotuladas como crendice, até serem reabilitadas por Freud, que viu no sonho a porta de acesso ao inconsciente -onde estão aquelas verdades que, por traumáticas, relegamos ao olvido.
O sonho, portanto, não nos fala sobre o futuro, não é profético (a não ser quando corresponde a uma "self-fulfilling prophecy", uma profecia que uma vez formulada se transforma em vontade imperiosa); o que ele nos revela é o nosso passado, mas, ao fazê-lo, abre caminho para o processo de autoconhecimento que é o fundamento da psicanálise.
Visitantes frequentes do inconsciente, os artistas e os escritores sempre valorizaram o sonho. Ilustra-o o episódio vivido pelo poeta inglês Coleridge que, adormecido (sob efeito de ópio) sonhou com um poema inteiro, "Kubla Khan". Acordando, pôs-se a escrevê-lo, mas foi interrompido por um visitante: o poema ficou inconcluso.
Gérard de Nerval começa seu romance "Aurélia", dizendo que "os sonhos são uma segunda vida" e, de fato, a narrativa tem um clima fortemente onírico. "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll parte do sonho para nos introduzir ao mundo da imaginação, e o mesmo fizeram os surrealistas.
"Caderno de Sonhos", de Ana Miranda ("Boca do Inferno, Amrik"), tem, portanto, antecedentes. Isto não impede que se configure como uma obra das mais originais aparecidas ultimamente. Durante muitos anos, conta-nos o prefácio, a autora registrou seus sonhos em cadernos escolares, por vezes ilustrando-os com desenhos. Todos se perderam, exceto um, que deu origem ao presente volume.
O período corresponde à gravidez e ao início da vida do primeiro filho de Ana, que tinha então 21 anos. Alguns sonhos são de uma dramaticidade impressionante. "Estou deitada na cama e debaixo do meu travesseiro há um vidro com uma serpente venenosa. (...) Os meus dentes caem no travesseiro, choro, abro a boca desesperada, fico branca, pálida..." Às vezes beiram o horror: "Um homem senta ao meu lado, na cama. Ele me dá uma faca e sei o que preciso fazer. Ele tira o pênis e me faz sinal. Seguro o se pênis e com a faca corto-o na raiz." "Um homem me manda um papel onde está escrito, "Eu te amo". Mando outro papel para ele, sem nada escrito."
Podemos ler os textos de várias maneiras. Em primeiro lugar, à clássica maneira freudiana, já que nos relatos não faltam situações simbólicas; um psicanalista teria material para muitas e muitas sessões. Ou podemos lê-los tais como são, simples descrições de episódios oníricos, que se impõem pelo que têm de enigmático.
Mas uma pergunta fica no ar, inquietante e divertida ao mesmo tempo: será que Ana Miranda sonhou mesmo estes sonhos? Ou será que ela os inventou, como uma forma alternativa, insólita, do fazer literário? (Como sabe, por exemplo, que ficou "pálida"? Alguém já se viu, em sonhos, pálido?) Ou ainda: será que ela sonhou que teve estes sonhos?
A questão remete a uma história que li ou ouvi há algum tempo, não sei se verídica ou não. Tratava-se de um escritor que, em sonhos, tinha excelentes idéias para contos e romances, mas que, ao acordar, esquecia-as, o que o deixava muito irritado. Para resolver este problema, colocou na mesa de cabeceira um caderno e um lápis.
Naquela noite sonhou com uma grande idéia ficcional. Acordando, anotou rapidamente o que lhe ocorrera e, muito satisfeito com sua esperteza, voltou a dormir. De manhã lembrou-se do que acontecera, mas não lembrou da idéia que tivera. Não se preocupou, pois ela estava anotada. Só que nada estava escrito no caderno. Ele sonhara que tinha tido uma boa idéia, sonhara que a tinha anotado; sonhara, enfim. O inconsciente pregara-lhe uma peça, mas é possível que Ana Miranda tenha pregado uma peça a seu próprio inconsciente. Será?
Esse enigma é que se constitui no aspecto mais importante do livro. O que separa, afinal, o sonho da ficção? Será que a ficção não é um sonho em letra de forma, o imaginário escrito, não visualizado? Será que imaginar sonhos, e escrevê-los, não é de alguma forma sonhar? Será que sonhar não é uma forma de fazer ficção, uma forma ao alcance de todos? Ou será que o escritor tem, em relação a seus sonhos ou devaneios, uma responsabilidade maior?
Essa questão remete ao título de um belo conto do escritor americano Delmore Schwartz: "Nos Sonhos Começam as Responsabilidades". Que tipo de responsabilidade pode começar no sonho? Ana Miranda nos propõe uma resposta: a responsabilidade traduz-se na rigorosa, na extrema fidelidade à imaginação ficcional. É o que temos em "Caderno de Sonhos": a ficção levada ao extremo. Para surpresa e deleite do leitor.


Caderno de Sonhos      Autora: Ana Miranda Editora: Dantes Livraria Quanto: R$ 22 (144 págs.)




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