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"CADERNO DE SONHOS"
Ana Miranda tece os limites entre o sonhar e o fazer ficção
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Dormir, talvez sonhar, diz
Hamlet em seu solilóquio e,
ao fazê-lo, resume milênios de ansiedades e expectativas. Talvez sonhar -e daí? O que nos dizem os
sonhos? Pergunta aflitiva.
Não é de admirar o poder atribuído àqueles que, de algum modo, pretendem conhecer o significado oculto do sonhar; na Bíblia, a
sorte de José muda drasticamente
quando ele interpreta o sonho do
Faraó como uma antecipação do
futuro. A Antiguidade acreditava
firmemente no sonho como revelação, como premonição; tal crença está presente nos poemas de
Homero. Para os gregos, os sonhos eram mensagens dos deuses. Uma pessoa doente iria ao
templo de Apolo ou de Esculápio,
cumpriria certos rituais, deitaria
para dormir -e em sonhos lhe
seria revelada a cura da doença.
Com a modernidade, essas coisas passaram a ser rotuladas como crendice, até serem reabilitadas por Freud, que viu no sonho a
porta de acesso ao inconsciente
-onde estão aquelas verdades
que, por traumáticas, relegamos
ao olvido.
O sonho, portanto, não nos fala
sobre o futuro, não é profético (a
não ser quando corresponde a
uma "self-fulfilling prophecy",
uma profecia que uma vez formulada se transforma em vontade
imperiosa); o que ele nos revela é
o nosso passado, mas, ao fazê-lo,
abre caminho para o processo de
autoconhecimento que é o fundamento da psicanálise.
Visitantes frequentes do inconsciente, os artistas e os escritores sempre valorizaram o sonho.
Ilustra-o o episódio vivido pelo
poeta inglês Coleridge que, adormecido (sob efeito de ópio) sonhou com um poema inteiro,
"Kubla Khan". Acordando, pôs-se a escrevê-lo, mas foi interrompido por um visitante: o poema ficou inconcluso.
Gérard de Nerval começa seu
romance "Aurélia", dizendo que
"os sonhos são uma segunda vida" e, de fato, a narrativa tem um
clima fortemente onírico. "Alice
no País das Maravilhas", de Lewis
Carroll parte do sonho para nos
introduzir ao mundo da imaginação, e o mesmo fizeram os surrealistas.
"Caderno de Sonhos", de Ana
Miranda ("Boca do Inferno, Amrik"), tem, portanto, antecedentes. Isto não impede que se configure como uma obra das mais
originais aparecidas ultimamente. Durante muitos anos, conta-nos o prefácio, a autora registrou
seus sonhos em cadernos escolares, por vezes ilustrando-os com
desenhos. Todos se perderam, exceto um, que deu origem ao presente volume.
O período corresponde à gravidez e ao início da vida do primeiro
filho de Ana, que tinha então 21
anos. Alguns sonhos são de uma
dramaticidade impressionante.
"Estou deitada na cama e debaixo
do meu travesseiro há um vidro
com uma serpente venenosa. (...)
Os meus dentes caem no travesseiro, choro, abro a boca desesperada, fico branca, pálida..." Às vezes beiram o horror: "Um homem
senta ao meu lado, na cama. Ele
me dá uma faca e sei o que preciso
fazer. Ele tira o pênis e me faz sinal. Seguro o se pênis e com a faca
corto-o na raiz." "Um homem me
manda um papel onde está escrito, "Eu te amo". Mando outro papel para ele, sem nada escrito."
Podemos ler os textos de várias
maneiras. Em primeiro lugar, à
clássica maneira freudiana, já que
nos relatos não faltam situações
simbólicas; um psicanalista teria
material para muitas e muitas sessões. Ou podemos lê-los tais como são, simples descrições de episódios oníricos, que se impõem
pelo que têm de enigmático.
Mas uma pergunta fica no ar,
inquietante e divertida ao mesmo
tempo: será que Ana Miranda sonhou mesmo estes sonhos? Ou será que ela os inventou, como uma
forma alternativa, insólita, do fazer literário? (Como sabe, por
exemplo, que ficou "pálida"? Alguém já se viu, em sonhos, pálido?) Ou ainda: será que ela sonhou que teve estes sonhos?
A questão remete a uma história
que li ou ouvi há algum tempo,
não sei se verídica ou não. Tratava-se de um escritor que, em sonhos, tinha excelentes idéias para
contos e romances, mas que, ao
acordar, esquecia-as, o que o deixava muito irritado. Para resolver
este problema, colocou na mesa
de cabeceira um caderno e um lápis.
Naquela noite sonhou com uma
grande idéia ficcional. Acordando, anotou rapidamente o que lhe
ocorrera e, muito satisfeito com
sua esperteza, voltou a dormir. De
manhã lembrou-se do que acontecera, mas não lembrou da idéia
que tivera. Não se preocupou,
pois ela estava anotada. Só que
nada estava escrito no caderno.
Ele sonhara que tinha tido uma
boa idéia, sonhara que a tinha
anotado; sonhara, enfim. O inconsciente pregara-lhe uma peça,
mas é possível que Ana Miranda
tenha pregado uma peça a seu
próprio inconsciente. Será?
Esse enigma é que se constitui
no aspecto mais importante do livro. O que separa, afinal, o sonho
da ficção? Será que a ficção não é
um sonho em letra de forma, o
imaginário escrito, não visualizado? Será que imaginar sonhos, e
escrevê-los, não é de alguma forma sonhar? Será que sonhar não é
uma forma de fazer ficção, uma
forma ao alcance de todos? Ou será que o escritor tem, em relação a
seus sonhos ou devaneios, uma
responsabilidade maior?
Essa questão remete ao título de
um belo conto do escritor americano Delmore Schwartz: "Nos Sonhos Começam as Responsabilidades". Que tipo de responsabilidade pode começar no sonho?
Ana Miranda nos propõe uma
resposta: a responsabilidade traduz-se na rigorosa, na extrema fidelidade à imaginação ficcional. É
o que temos em "Caderno de Sonhos": a ficção levada ao extremo.
Para surpresa e deleite do leitor.
Caderno de Sonhos
Autora: Ana Miranda
Editora: Dantes Livraria
Quanto: R$ 22 (144 págs.)
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