|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MANUEL DA COSTA PINTO
Arquitetura da destruição
"Os 120 Dias de Sodoma" tem o projeto de modelar para o homem um rosto cruel, de uma natureza sem criador
NA ÚLTIMA coluna, escrevi sobre "Lições de Sade", de Eliane Robert Moraes. Como o
lançamento dessa coletânea de ensaios ocorreu ao mesmo tempo que
a nova edição de "Os 120 Dias de Sodoma", do libertino francês, retorno
ao tema. De saída, deve-se ressaltar
que o festim de sangue, esperma e
coprofagia do "divino marquês"
constitui um clássico que é imprescindível ter na estante -porém fora
do alcance das crianças...
A referência aos efeitos pedagógicos da obra não é mero jogo de palavras, pois está no cerne do sistema
sadiano. Daí o subtítulo do livro: "A
Escola da Libertinagem". Foi esse
projeto de modelar para o homem
um rosto cruel, conseqüente com
uma natureza sem criador (ou na
qual impera o "deus dos filósofos",
abstrato ao ponto de dar as costas
para a dor da criatura), que seduziu
os pensadores que reabilitaram Sade no século 20.
Em "Os 120 Dias de Sodoma",
quatro libertinos se recolhem no
castelo de Silling e seguem com disciplina monástica um ritual do qual
participam homens, mulheres e meninos convocados para proporcionar paixões classificadas como simples, complexas, criminosas e assassinas. O certame segue leis estritas,
com horários para inspeção dos haréns, refeições e orgias cujas meticulosas descrições não cabem no pudico espaço dessa resenha.
Sade não conclui a obra, que a partir do 30º dia se resume a um plano
de cena, mas seu "script" de taras e
perversões tem estrutura rígida, remetendo às novelas do "Decamerão". As dez jornadas de Boccaccio,
entretanto, são atravessadas por
uma licenciosidade e por um anticlericalismo satíricos, ao passo que
"Os 120 Dias de Sodoma" perfazem
uma arquitetura da destruição.
Sade passou a maior parte da vida
preso na Bastilha e no sanatório de
Charenton. Após sua morte, em
1814, os livros de Donatien Alphonse-François (seu nome de batismo)
ficaram proibidos até que o surrealista Apollinaire ressuscitou o demônio.
Tem início então um período de
aclamação por intelectuais como
Barthes, Blanchot e Bataille, para
quem ""Os 120 Dias..." nos dizem que
o universo está em lento e contínuo
declínio, que tortura e destrói a totalidade dos seres a quem deu vida".
Nenhum deles, portanto, reabilitou Sade em nome da liberdade de
expressão, mas sim como apologia
de um pensamento sintetizado por
Eliane Robert Moraes: "O claustro
do libertino abre uma porta para a liberdade: é a encenação de outra forma de existência, na qual o homem
se liberta definitivamente dos valores sociais, rompendo o ciclo de servidões a que está sujeito na vida comunitária".
Passado esse momento de consagração, pode-se perguntar se liberdade e desalienação exigem esse catecismo cruel, se a ética do desejo
não pode representar uma outra
forma de servidão (de si e do outro)
-enfim, aquele "estoicismo do vício" descrito por Camus.
OS 120 DIAS DE SODOMA
Autor: Marquês de Sade
Tradução: Alain François
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 44 (368 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Crítica/história: Le Goff faz bom roteiro para estudo sobre o corpo na Idade Média Índice
|