São Paulo, sábado, 01 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MANUEL DA COSTA PINTO
Arquitetura da destruição

"Os 120 Dias de Sodoma" tem o projeto de modelar para o homem um rosto cruel, de uma natureza sem criador

NA ÚLTIMA coluna, escrevi sobre "Lições de Sade", de Eliane Robert Moraes. Como o lançamento dessa coletânea de ensaios ocorreu ao mesmo tempo que a nova edição de "Os 120 Dias de Sodoma", do libertino francês, retorno ao tema. De saída, deve-se ressaltar que o festim de sangue, esperma e coprofagia do "divino marquês" constitui um clássico que é imprescindível ter na estante -porém fora do alcance das crianças...
A referência aos efeitos pedagógicos da obra não é mero jogo de palavras, pois está no cerne do sistema sadiano. Daí o subtítulo do livro: "A Escola da Libertinagem". Foi esse projeto de modelar para o homem um rosto cruel, conseqüente com uma natureza sem criador (ou na qual impera o "deus dos filósofos", abstrato ao ponto de dar as costas para a dor da criatura), que seduziu os pensadores que reabilitaram Sade no século 20.
Em "Os 120 Dias de Sodoma", quatro libertinos se recolhem no castelo de Silling e seguem com disciplina monástica um ritual do qual participam homens, mulheres e meninos convocados para proporcionar paixões classificadas como simples, complexas, criminosas e assassinas. O certame segue leis estritas, com horários para inspeção dos haréns, refeições e orgias cujas meticulosas descrições não cabem no pudico espaço dessa resenha.
Sade não conclui a obra, que a partir do 30º dia se resume a um plano de cena, mas seu "script" de taras e perversões tem estrutura rígida, remetendo às novelas do "Decamerão". As dez jornadas de Boccaccio, entretanto, são atravessadas por uma licenciosidade e por um anticlericalismo satíricos, ao passo que "Os 120 Dias de Sodoma" perfazem uma arquitetura da destruição.
Sade passou a maior parte da vida preso na Bastilha e no sanatório de Charenton. Após sua morte, em 1814, os livros de Donatien Alphonse-François (seu nome de batismo) ficaram proibidos até que o surrealista Apollinaire ressuscitou o demônio.
Tem início então um período de aclamação por intelectuais como Barthes, Blanchot e Bataille, para quem ""Os 120 Dias..." nos dizem que o universo está em lento e contínuo declínio, que tortura e destrói a totalidade dos seres a quem deu vida".
Nenhum deles, portanto, reabilitou Sade em nome da liberdade de expressão, mas sim como apologia de um pensamento sintetizado por Eliane Robert Moraes: "O claustro do libertino abre uma porta para a liberdade: é a encenação de outra forma de existência, na qual o homem se liberta definitivamente dos valores sociais, rompendo o ciclo de servidões a que está sujeito na vida comunitária".
Passado esse momento de consagração, pode-se perguntar se liberdade e desalienação exigem esse catecismo cruel, se a ética do desejo não pode representar uma outra forma de servidão (de si e do outro) -enfim, aquele "estoicismo do vício" descrito por Camus.


OS 120 DIAS DE SODOMA     
Autor: Marquês de Sade
Tradução: Alain François
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 44 (368 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Crítica/história: Le Goff faz bom roteiro para estudo sobre o corpo na Idade Média
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.