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Crítica/história
Le Goff faz bom roteiro para estudo sobre o corpo na Idade Média
ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não fosse uma doença,
talvez Marcel Mauss
não tivesse escrito "As
Técnicas do Corpo" (1935), um
de seus ensaios mais notáveis.
Conta o antropólogo que, estando internado num hospital
de Nova York, percebeu no andar das enfermeiras algo familiar. Como tinha tempo de sobra para refletir, deu tratos à
bola e fez a descoberta capital:
era no cinema que as moças andavam daquele jeito. Mais tarde, reconheceu a mesma forma
de caminhar nas modernas jovens parisienses, fãs de filmes
americanos. Daí em diante, foi
questão de afiar o olhar para
criar um campo de pesquisa
que se tornou referência nas
ciências humanas do século 20.
O corpo está sujeito às dinâmicas da história -com esse
ponto de partida, o ensaio seminal de Mauss marcou em
particular os historiadores, cada vez mais interessados no tema. Entre eles, deve-se acrescentar o nome do medievalista
Jacques Le Goff, que assina
agora "Uma História do Corpo
na Idade Média", em que rende
tributo à antropologia histórica
do mestre francês.
Diferentemente de Mauss,
porém, o livro de Le Goff parece ser fruto menos de uma demanda intelectual surgida ao
acaso e mais de uma estratégia
do mercado editorial. Escrito
em parceria com o jornalista
Nicolas Truong, o trabalho se
insere na recente voga de publicações que divulgam temas históricos em linguagem acessível
ao público, com sucesso também entre nós.
Corpo moderno
É de supor ainda que o lançamento, de 2005, inspirou-se na
notável série "Histoire du
Corps", iniciada no ano anterior sob a direção de Alain Corbain, Jean-Jacques Courtine e
Georges Vigarello. Ora, esse rigoroso conjunto de estudos se
propõe a investigar a emergência do "corpo moderno", analisando os significados e as práticas físicas do Renascimento aos
nossos dias, o que deixa a Idade
Média de fora. Tudo leva a crer
que a iniciativa editorial valeu-se do nome prestigioso de Le
Goff para preencher tal lacuna.
Isso posto, cumpre dizer que
o volume, de leitura agradável,
pode proporcionar descobertas
de interesse. Os autores partem
da oposição entre Carnaval e
Quaresma, que organiza a paisagem sensível do mundo medieval, buscando seus desdobramentos nas vivências corporais. Oposição produtiva,
sem dúvida, já que confronta a
abundância da festa profana
-não por acaso comandada pelo Rei Momo- à abstinência
dos devotos, implicando a passagem do jejum alimentar para
o sexual. Daí também a contraposição entre as lágrimas e o riso, em uma das melhores passagens do livro.
Trata-se, enfim, de um bom
roteiro para quem deseja iniciar um estudo sobre o tema.
Justamente por valer-se apenas de fontes secundárias, o
texto mobiliza importantes
trabalhos sobre a sensibilidade
medieval, incluindo os do próprio Le Goff, embora não deixe
de evidenciar o tom apressado
dos livros de divulgação. Diferentemente de Mauss, vale repetir, o que parece ter faltado
aos autores foi um pouco de
tempo para refletir.
ELIANE ROBERT MORAES é professora de estética e literatura na PUC-SP e no Centro Universitário Senac. Publicou, entre outros livros, "Lições de Sade" (Iluminuras)
UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA
Autor: Jacques Le Goff e Nicolas Truong
Tradução: Marcos Flamínio Peres
Editora: Record
Quanto: R$ R$ 33,90 (208 págs.)
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