São Paulo, sábado, 01 de julho de 2006

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Crítica/história

Le Goff faz bom roteiro para estudo sobre o corpo na Idade Média

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não fosse uma doença, talvez Marcel Mauss não tivesse escrito "As Técnicas do Corpo" (1935), um de seus ensaios mais notáveis.
Conta o antropólogo que, estando internado num hospital de Nova York, percebeu no andar das enfermeiras algo familiar. Como tinha tempo de sobra para refletir, deu tratos à bola e fez a descoberta capital: era no cinema que as moças andavam daquele jeito. Mais tarde, reconheceu a mesma forma de caminhar nas modernas jovens parisienses, fãs de filmes americanos. Daí em diante, foi questão de afiar o olhar para criar um campo de pesquisa que se tornou referência nas ciências humanas do século 20.
O corpo está sujeito às dinâmicas da história -com esse ponto de partida, o ensaio seminal de Mauss marcou em particular os historiadores, cada vez mais interessados no tema. Entre eles, deve-se acrescentar o nome do medievalista Jacques Le Goff, que assina agora "Uma História do Corpo na Idade Média", em que rende tributo à antropologia histórica do mestre francês.
Diferentemente de Mauss, porém, o livro de Le Goff parece ser fruto menos de uma demanda intelectual surgida ao acaso e mais de uma estratégia do mercado editorial. Escrito em parceria com o jornalista Nicolas Truong, o trabalho se insere na recente voga de publicações que divulgam temas históricos em linguagem acessível ao público, com sucesso também entre nós.

Corpo moderno
É de supor ainda que o lançamento, de 2005, inspirou-se na notável série "Histoire du Corps", iniciada no ano anterior sob a direção de Alain Corbain, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello. Ora, esse rigoroso conjunto de estudos se propõe a investigar a emergência do "corpo moderno", analisando os significados e as práticas físicas do Renascimento aos nossos dias, o que deixa a Idade Média de fora. Tudo leva a crer que a iniciativa editorial valeu-se do nome prestigioso de Le Goff para preencher tal lacuna.
Isso posto, cumpre dizer que o volume, de leitura agradável, pode proporcionar descobertas de interesse. Os autores partem da oposição entre Carnaval e Quaresma, que organiza a paisagem sensível do mundo medieval, buscando seus desdobramentos nas vivências corporais. Oposição produtiva, sem dúvida, já que confronta a abundância da festa profana -não por acaso comandada pelo Rei Momo- à abstinência dos devotos, implicando a passagem do jejum alimentar para o sexual. Daí também a contraposição entre as lágrimas e o riso, em uma das melhores passagens do livro.
Trata-se, enfim, de um bom roteiro para quem deseja iniciar um estudo sobre o tema.
Justamente por valer-se apenas de fontes secundárias, o texto mobiliza importantes trabalhos sobre a sensibilidade medieval, incluindo os do próprio Le Goff, embora não deixe de evidenciar o tom apressado dos livros de divulgação. Diferentemente de Mauss, vale repetir, o que parece ter faltado aos autores foi um pouco de tempo para refletir.


ELIANE ROBERT MORAES é professora de estética e literatura na PUC-SP e no Centro Universitário Senac. Publicou, entre outros livros, "Lições de Sade" (Iluminuras)

UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA    
Autor: Jacques Le Goff e Nicolas Truong
Tradução: Marcos Flamínio Peres
Editora: Record
Quanto: R$ R$ 33,90 (208 págs.)


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