São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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FERREIRA GULLAR

Sarado, mas nem tanto


Pode-se dizer que, se sou sadio de corpo, da cabeça não tanto; minha doença é mental

NÃO FAÇO cooper porque tenho preguiça, mas costumo andar, de manhã cedo, aqui pela praia de Copacabana, a uma quadra e meia de onde moro. É por preguiça, mas também porque não preciso, já que meu nível de colesterol é baixíssimo. O último check-up que fiz impressionou a médica: "Como pode, nessa idade, se manter tão saudável? O que come?", perguntou-me ela. E eu respondi: "Nada".
Ela riu. Não é verdade, mas é quase isso, a cada dia como menos, de tal modo que vou terminar competindo com aquele personagem de Kafka que bateu todos os recordes de jejum dentro de uma jaula, num circo. No final, soube-se que aquilo para ele não era nenhum sacrifício, já que nenhuma comida lhe apetecia.
Se não faço cooper porque sou corporalmente saudável, sinto, porém, necessidade de andar, de sair de casa, de rodar pelas ruas, para livrar-me dos problemas que me fazem pensar sem parar. Quando começam a se atropelar na minha cabeça, atordoando-me, a solução é sair: a luz do sol, a maresia, as pessoas passando, os cachorros, os turistas ajudam-me a sair de mim e dar um basta no fluxo interminável de raciocínios. Pode-se dizer que, se sou sadio de corpo, da cabeça não tanto; minha doença é mental, contraria a célebre máxima do poeta latino: mens insana in corpore sano.
O problema de você ficar andando pela rua, além do risco dos assaltos, são alguns chatos que o identificam: "Você não é o Goulart de Andrade?". Ou um outro que se diz seu colega no colégio Marista, onde você nunca estudou. Mas nem sempre sou interpelado por chatos, como ocorreu nesta manhã, quando voltava de meu passeio pela rua Rodolfo Dantas. Uma senhora magrinha, de uns 70 anos, sorriu e perguntou-me onde ficava a agência da Varig.
-A agência que havia nesta rua, logo ali adiante, fechou, disse-lhe eu.
-Fechou, é? Que pena.
-Parece que a própria Varig fechou, não existe mais.
-Sabe qual é o problema? É uma sobrinha minha que deve ir para Aracaju e prefere a Varig.
-Vai ter de mudar de preferência.
-Da vez passada, ela foi por outra empresa mas, veja o senhor, saiu do Rio às três da tarde e só chegou em Aracaju depois da meia-noite.
-O caos aéreo?
-Sim, mas além disso não há mais vôo direto para Aracaju. Você desce em Salvador e tem que pegar outro avião. É a tal da conexão. Isso virou um inferno, porque havia outras conexões que vinham de outros lugares. Ela entrou no avião e ficou horas esperando a chegada de passageiros que chegariam em outros vôos.
-Eu também já passei por isso. As empresas aéreas descobriram que assim ganham mais dinheiro. Os passageiros que se danem.
-Com o caos aéreo a situação piorou muito.
-Mas o ministro Mantega acha bom, diz que é sinal de progresso.
-É o governo do quanto melhor pior! É o governo Lula. Aquela outra não mandou a gente relaxar e gozar?
-Dizem que ela deu esse mesmo conselho ao Renan Calheiros e o resultado está se vendo aí.
-É uma vergonha. Agora alegam que ele não pode ser investigado sem autorização do Supremo Tribunal, porque é senador e senador tem foro privilegiado. Pode me dizer o que é foro privilegiado?
-Também não sei. Se a Justiça deve ser igual para todos...
-Acho que foro privilegiado é aquele que não condena. Um senador, um deputado, um ministro não podem estar sujeitos a ser punidos por um juiz qualquer. Para gente nobre, Justiça nobre. Continuamos no Império. Existe a nobreza e o resto. O foro privilegiado oculta a verdadeira intenção dos donos do poder, que é estar acima da Justiça, gozar do direito de não ser julgado, gozar de impunidade. Como seria descaramento demais, inventou-se o foro privilegiado, que, como o nome já está dizendo, institui um privilégio.
-E o suplente de senador? Dá para acreditar numa coisa dessas? Como o sujeito pode ser representante do povo se ninguém votou nele? É uma afronta à democracia, uma trapaça que anula o direito do cidadão. Por isso é que digo: esses políticos constituem uma casta que se apossou do país. Há, entre eles, pessoas honestas, com espírito público, mas são a minoria, infelizmente.
-Vejo que a senhora está por dentro dos problemas...
-Melhor que não estivesse, fico revoltada... Bem, tenho que levar isto para consertar. É uma peça do aspirador de pó... Acho que estou reconhecendo o senhor...
Antes que me perguntasse se não sou o Goulart de Andrade, aproveitei o sinal aberto e cruzei a avenida quase tão lépido quanto um jovem.


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