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FERREIRA GULLAR
Sarado, mas nem tanto
Pode-se dizer que, se sou sadio de corpo, da cabeça não tanto; minha doença é mental
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NÃO FAÇO cooper porque tenho preguiça, mas costumo
andar, de manhã cedo, aqui
pela praia de Copacabana, a uma
quadra e meia de onde moro. É por
preguiça, mas também porque não
preciso, já que meu nível de colesterol é baixíssimo. O último check-up
que fiz impressionou a médica: "Como pode, nessa idade, se manter tão
saudável? O que come?", perguntou-me ela. E eu respondi: "Nada".
Ela riu. Não é verdade, mas é quase isso, a cada dia como menos, de tal
modo que vou terminar competindo
com aquele personagem de Kafka
que bateu todos os recordes de jejum dentro de uma jaula, num circo.
No final, soube-se que aquilo para
ele não era nenhum sacrifício, já que
nenhuma comida lhe apetecia.
Se não faço cooper porque sou
corporalmente saudável, sinto, porém, necessidade de andar, de sair
de casa, de rodar pelas ruas, para livrar-me dos problemas que me fazem pensar sem parar. Quando começam a se atropelar na minha cabeça, atordoando-me, a solução é
sair: a luz do sol, a maresia, as pessoas passando, os cachorros, os turistas ajudam-me a sair de mim e
dar um basta no fluxo interminável
de raciocínios. Pode-se dizer que, se
sou sadio de corpo, da cabeça não
tanto; minha doença é mental, contraria a célebre máxima do poeta latino: mens insana in corpore sano.
O problema de você ficar andando
pela rua, além do risco dos assaltos,
são alguns chatos que o identificam:
"Você não é o Goulart de Andrade?".
Ou um outro que se diz seu colega no
colégio Marista, onde você nunca
estudou. Mas nem sempre sou interpelado por chatos, como ocorreu
nesta manhã, quando voltava de
meu passeio pela rua Rodolfo Dantas. Uma senhora magrinha, de uns
70 anos, sorriu e perguntou-me onde ficava a agência da Varig.
-A agência que havia nesta rua,
logo ali adiante, fechou, disse-lhe eu.
-Fechou, é? Que pena.
-Parece que a própria Varig fechou, não existe mais.
-Sabe qual é o problema? É uma
sobrinha minha que deve ir para
Aracaju e prefere a Varig.
-Vai ter de mudar de preferência.
-Da vez passada, ela foi por outra
empresa mas, veja o senhor, saiu do
Rio às três da tarde e só chegou em
Aracaju depois da meia-noite.
-O caos aéreo?
-Sim, mas além disso não há mais
vôo direto para Aracaju. Você desce
em Salvador e tem que pegar outro
avião. É a tal da conexão. Isso virou
um inferno, porque havia outras conexões que vinham de outros lugares. Ela entrou no avião e ficou horas
esperando a chegada de passageiros
que chegariam em outros vôos.
-Eu também já passei por isso. As
empresas aéreas descobriram que
assim ganham mais dinheiro. Os
passageiros que se danem.
-Com o caos aéreo a situação piorou muito.
-Mas o ministro Mantega acha
bom, diz que é sinal de progresso.
-É o governo do quanto melhor
pior! É o governo Lula. Aquela outra
não mandou a gente relaxar e gozar?
-Dizem que ela deu esse mesmo
conselho ao Renan Calheiros e o resultado está se vendo aí.
-É uma vergonha. Agora alegam
que ele não pode ser investigado
sem autorização do Supremo Tribunal, porque é senador e senador tem
foro privilegiado. Pode me dizer o
que é foro privilegiado?
-Também não sei. Se a Justiça
deve ser igual para todos...
-Acho que foro privilegiado é
aquele que não condena. Um senador, um deputado, um ministro não
podem estar sujeitos a ser punidos
por um juiz qualquer. Para gente nobre, Justiça nobre. Continuamos no
Império. Existe a nobreza e o resto.
O foro privilegiado oculta a verdadeira intenção dos donos do poder,
que é estar acima da Justiça, gozar
do direito de não ser julgado, gozar
de impunidade. Como seria descaramento demais, inventou-se o foro
privilegiado, que, como o nome já
está dizendo, institui um privilégio.
-E o suplente de senador? Dá para acreditar numa coisa dessas? Como o sujeito pode ser representante
do povo se ninguém votou nele? É
uma afronta à democracia, uma trapaça que anula o direito do cidadão.
Por isso é que digo: esses políticos
constituem uma casta que se apossou do país. Há, entre eles, pessoas
honestas, com espírito público, mas
são a minoria, infelizmente.
-Vejo que a senhora está por dentro dos problemas...
-Melhor que não estivesse, fico
revoltada... Bem, tenho que levar isto para consertar. É uma peça do aspirador de pó... Acho que estou reconhecendo o senhor...
Antes que me perguntasse se não
sou o Goulart de Andrade, aproveitei o sinal aberto e cruzei a avenida
quase tão lépido quanto um jovem.
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